quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Educar hoje

É opinião geral que a solução dos problemas de nossa sociedade depende de que se invista na educação. Mas como? Ou melhor, o que na verdade esperam de nós os jovens e crianças de nosso tempo?
Os padrões de trabalho, vida em família e relacionamento social são hoje muito diferentes. Durante séculos, o trabalho e a vida familiar se interpenetravam, e a formação dos filhos se dava nesses ambientes com muita naturalidade. Numa sociedade agrária, era comum pai, mãe e filhos saírem pela manhã para cuidar da lavoura, e ali as crianças cresciam vendo o esforço dos pais para ganhar, com o suor do trabalho, o sustento. Contemplavam, por vezes, os pais cuidando de sua rudimentar contabilidade, acompanhavam-nos em raras compras na cidade (uma vez por ano), quando se adquiria o essencial, que se pudesse pagar à vista, num tempo em que nos dicionários sequer existia a palavra consumismo.
Por vezes, o pai era comerciante ou artesão, mas, também nesses casos, o comum era que a casa se situasse aos fundos ou próxima de onde se trabalhava, de modo que os filhos iam e vinham ao local do trabalho, em suma, aprendiam muito mais com o exemplo do que com o que se falava, com a simplicidade das coisas cotidianas.
Não pretendo embrenhar-me num saudosismo para simplesmente dizer que aquilo era bom e o de hoje não presta. Mas temos de admitir que hoje, com freqüência, os filhos não sabem exatamente em que consiste a atividade profissional dos pais. Para muitos, o trabalho do pai e da mãe é aquilo que os esgotam tanto que os deixam estirados no sofá à noite enquanto reclamam: “estou exausto!”. Os dias dos filhos, sem muitas variantes, oscilam entre escola, cursos e casa, e nessa é comum permitir-lhes uma overdose de computador e televisão.
Nesse cenário moderno, em que convivência é pequena e pobre, como se pode proporcionar uma boa formação aos filhos?
 Um grande sábio do século passado costumava lecionar: para servir, servir. E explicava que ninguém não dá o que não tem, ou seja, para ensinar algo, há que  aprender primeiro. Traduzindo isso para os educadores de nosso tempo, antes de mais nada, devem esforçar-se para que suas próprias vidas sejam uma constante luta por adquirir e crescer nas virtudes: honestidade, generosidade, sinceridade, laboriosidade, solidariedade. Basta um breve exame para constatarmos que muito podemos melhorar nisso tudo. Não é necessário, porém, sermos perfeitos para educar nossos filhos, ou nossos alunos, mas é importantíssimo que eles nos vejam lutando por sermos cada vez melhores.
Penso que o norte a ser dado à educação, proclamada como panacéia para nossa sociedade, é estimular a formação dos principais educadores: pais e professores. Quanto mais virtuosos forem, quanto mais competentes e dedicados em seus trabalhos, quanto mais humanos se mostrarem, tanto mais estimularão e impulsionarão os seus educandos. Filhos e alunos assimilam os ensinamentos quando enxergam de verdade em seus educadores exemplos concretos de luta.
E depois, há que se estimular uma sadia cumplicidade entre eles, pais e professores. Fiquei sabendo recentemente de um casal que foi convidado a uma conversa na escola do filho. Foram esperando encontrar o de sempre: queixas acerca do mau comportamento e nenhuma proposta de solução. Porém, a surpresa foi que a professora iniciou por apontar aspectos muito positivos da conduta do filho, muitos desses sequer notados pelos pais, mas também indicou pontos em que poderia melhorar. Mais que isso, sugeriu uma estratégia clara e concreta a ser seguida em casa e outra a ser aplicada por ela no colégio, numa mesma direção, visando o crescimento em uma virtude. O resultado foi excelente.
Outros pais, ao saberem daquela iniciativa de sucesso, durante uma viagem, comentaram o caso na presença do filho, sem perceberem que o garoto prestava atenção na conversa. Em certo momento, ele deu sua opinião certeira: “Caramba, eles devem gostar mesmo daquela criança! Pai, mãe e professora perdendo tempo em conversar sobre o filho!”

O que impede que isso seja feito na escola pública?

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

A causa da violência

A barbárie voltou à tona. Semana passada nos deixou atônitos a notícia de morte de um jovem. Motivo? Era torcedor do time adversário, o dos homicidas! Nas delegacias de polícia continuam freqüentes as ocorrências de roubos em que os bandidos invadem casas à luz do dia, humilham, maltratam, ferem, por vezes, matam, destroem e deixam nas vítimas o sabor amargo, um quê de medo ou de repugnância. E, quando nossas mentes conseguem abafar um pouco essas tragédias, trazem-nos de volta as notícias da velha corrupção nos meios políticos.
Contemplando isso tudo é natural que nos indaguemos, por quê? Por que tanto ódio? Por que tanta violência? Por que tanta ganância e sede de poder? Tais questionamentos são comuns diante de tal adversidade. Mas num convite à reflexão podemos inverter as perguntas e talvez isso nos ajude a tocar no fundo do problema. Ou seja, por que respeitar o semelhante? Por que exercer um trabalho digno? Enfim, por que ser honesto?
Como sempre, os pontos positivos e negativos de nossa sociedade são reflexos do que há no interior das pessoas que a compõem. Isso implica considerar que uma resposta adequada às causas da crise social depende de uma análise apurada do que se passa no interior de seus integrantes. Há que se investigar, portanto, quais são as verdadeiras aspirações e indagações dos seres humanos e de como eles têm respondido a isso.
Leo Trese inicia sua obra a fé explicada propondo uma série de perguntas, que, por certo, de uma maneira ou de outra, todos já nos propomos: “Será o homem um mero acidente biológico? E o gênero humano, uma simples etapa num processo evolutivo cego e sem sentido? Será que esta vida humana não passa de uma cintilação entre a longa escuridão que precede a concepção e a escuridão eterna que virá após a morte? E eu, serei apenas um grão de poeira insignificante no universo, lançado à existência pelo poder criador de um Deus indiferente, como a casca de laranja inútil que se joga fora sem pensar? Tem a vida alguma finalidade, algum plano, algum propósito? Enfim, de onde é que eu venho? E por que estou aqui?”
A resposta a essas indagações, mais que isso, a opção de vida coerente com essa resposta é que pode justificar as ações a que mencionamos acima. Se a vida humana não passa de uma cintilação, como diz Leo Trese, posso dar a ela o sentido que quiser, inclusive ter como meta destruir, a qualquer custo, a torcida uniformizada do outro time. Por quê? Sabe-se lá... Porque há algo com que preencher os dias e se escolhe isso por não achar algo melhor que o valha.
Se, enquanto ser humano, sou “um grão de poeira insignificante no universo”, ou uma “casca de laranja inútil que se joga fora sem pensar”, posso concluir que as demais pessoas também igualmente o são. Nesse caso, por que não posso tratar os demais como algo desprezível, invadindo-lhes as residências, roubando, ofendendo, matando?
O problema, ou pior, a tragédia, é que, com essas infelizes opções de vida, cedo ou tarde se perceberá que o coração humano é muito grande e, além disso, tem um enorme coeficiente de dilatação. Ele não se satisfaz com carros, iates, viagens e nem com muitos dólares na cueca para preenchê-lo. É que foi feito para abrigar o próprio Criador, e, por amor a Ele, todos os irmãos que tiveram a mesma sorte de lhes ser confiado o dom da vida.
Não tenhamos, pois, mais dúvidas: não há sociedade doente, o que há são corações cansados de abrigar coisas podres que nos impedem de trazer na face o selo da verdadeira alegria. E essa, não a têm os bandidos enquanto contam o produto de seu roubo, nem os torcedores homicidas enquanto comemoram a triste vitória sobre a vida do adversário, nem os corruptos enquanto constroem seus castelos sobre a areia.

Têm-na, ao contrário, aqueles que se dedicam a contar histórias às crianças do Boldrini, os que gastam alguns minutos de seu precioso tempo visitando um doente, ouvindo um idoso contar a mesma história de sempre, enfim, quem tem a sabedoria de descobrir na face daquele que sofre a alegria e o desafio de servir, caminhando neste mundo como que de passagem, sem medo da vida e sem medo da morte.

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Greve de fome

Certa vez, encontrávamos eu e minha esposa na casa de um casal, amigos nossos, que nos convidou para um jantar. Enquanto conversávamos de forma descontraída, o filho de nossa amiga, que então contava com cerca de dez anos, entrou na sala e colocou a mãe contra a parede: “Mãe, você já decidiu se poderei ir ao acampamento amanhã?”. A mãe, calmamente, respondeu que já decidiu, mas que conversaria com o filho mais tarde. Ele insistiu e ela, discretamente, pediu-nos licença e manteve uma conversa com o filho.
Mais tarde, já na mesa de jantar, o filho tomou assento contrariadíssimo e, de braços cruzados, recusava-se a provar qualquer alimento. A mãe então lhe perguntou se não iria mesmo comer nada, ao que respondeu: “se você não me deixar ir no passeio com meus amigos, não vou comer nada”. Sem perder a paciência, nossa amiga concluiu: “estou em paz com a minha consciência de que decidi o que é melhor para você e, por esse motivo, não irá a esse acampamento. Agora, se não quer comer, fique muito à vontade, a próxima refeição a ser servida nesta casa será amanhã, o café da manhã”. Dito isso, retirou-lhe o prato e, tomando-o pelo braço, conduziu o filho ao quarto.
Impressionou-me muito a firmeza e, ao mesmo tempo, delicadeza dessa mãe. Penso que esse episódio pode nos ajudar a meditar acerca de qual é o limite das atitudes que podemos tomar para pressionar os outros a tomar as decisões que nos parecem convenientes ou corretas. Concretamente, até que ponto é aceitável a greve de fome para instar certas pessoas, mormente detentoras de poder, a agir de determinada maneira?
E a questão pode se tornar ainda mais complexa se atentarmos para que as pessoas agem, ou deveriam agir, sempre de acordo com os ditames de suas consciências, e essas, espera-se que estejam bem formadas.
Thomas More, o célebre humanista inglês, acusado de conspirar contra Henrique VIII, durante sua permanência na prisão, numa carta escrita à filha Margareth, disse-lhe: “a claridade de minha consciência fez meu coração saltar de alegria”. E More disse isso quando já sabia que a decisão tomada de acordo com sua consciência lhe renderia a morte.
Nesse contexto, quando alguém, investido de autoridade, pratica ou tende a praticar algo que nos parece ilícito, incorreto ou inconveniente, qual deve ser a nossa postura diante disso?
Acredito que devemos defender o ideal que nos parece correto, ou seja, aquele que nossas consciências aponta como melhor, com todos os meios de que dispomos: palavras, cartas aos meios de comunicação, manifestações públicas, passeatas, em suma, tudo o que se admite numa democracia como legítimos instrumentos de pressão.
Quanto à greve de fome, por mais que tenha pensado acerca de seus fundamentos, não consegui ainda me desvencilhar de uma contradição que me parece insuperável. É que quem a faz pensa que o outro, aquele a quem pretende pressionar, deva se preocupar com a sua vida mais que ele próprio. Pior ainda, sugere algo do tipo: “se não fizer o que eu quero, você será o culpado da minha morte”. Ora, o culpado da morte em si será, nesse caso, sempre e inexoravelmente aquele que negou alimento a si próprio. O outro será, quando muito, culpado das conseqüências do ato que motivou a greve de fome, não da inanição de quem a faz.
Portanto, penso que a greve de fome, quando muito, possa ter como propósito instar alguma pessoa a examinar em sua consciência a questão que a motiva. Ir além disso, ou seja, exigir que a decisão seja tomada como quer o grevista, é tolher a liberdade de quem toma a decisão e, muitas vezes, um atentado à própria vida, o que é inaceitável.

Confesso que já me coloquei a pensar no que eu faria se, por exemplo, um grupo de mil pessoas, se dispusesse a fazer greve de fome, exigindo-me que decidisse um caso de determinada maneira. Se isso me ocorresse, meditaria muito mais a fundo no assunto, afinal, mil pessoas têm muito mais chances de estarem certas do que um sozinho. Mas ainda assim, se a minha consciência, após detida e ponderada análise, apontasse no sentido contrário, seguiria a voz da minha consciência que, nesse caso, também não me acusaria da morte dos que me pressionam.

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

Feliz aniversário, Milena! Parabéns, Brasil!

Hoje, nossa Constituição Federal completa dezessete anos. E para celebrar essa data, tal como o poeta, eu fico com a pureza da resposta das crianças para cantar a beleza da vida.
No dia 5 de outubro de 1988, o Dr. Ulisses Guimarães, com a voz trêmula e emocionada, discursava ao povo brasileiro agitando nas mãos aquele livro, até então pouco conhecido, mas que, hoje sabemos, começa com essas fortes palavras: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte (...), promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. E essa mesma lei, que muito fortemente influenciaria a nossa história, já no seu 5º artigo, consagra o mais magnífico direito a que podemos aspirar, assegurando aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida.
Sim, festejar o aniversário é celebrar a vida. E, ao fazê-lo, com a simplicidade a que nos propusemos, lembremos de uma célebre aniversariante do dia de ontem, 4 de outubro: a Milena. No último dia 19 de setembro, o Correio Popular nos trouxe uma reportagem que abordava o drama de famílias que têm filhos deficientes. Aliás, deficientes de algum atributo físico ou mental, não do amor dos seus pais, do que são riquíssimos, como nos relata a matéria.
E guardo o jornal, confesso que salpicado de lágrimas, onde encontramos brilhantes lições de vida: “Quando eu estava no quinto mês de gestação” – relata a mãe, “nós recebemos a notícia de que a menina que tanto esperávamos tinha síndrome de Down”. “O médico que revelou o resultado do exame, um ser humano que se mostrou completamente insensível, chegou até a insinuar a possibilidade de um aborto caso a gente optasse por se livrar da situação”. Penso que deve ter sido momentos muito duros para a mãe, receber uma insinuação homicida de alguém que um dia fez um juramento a Hipócrates de lutar pela vida, mas hipocritamente cultua a morte.
Mas falemos de vida. Afinal, a Celiana, mãe da Milena, não sucumbiu à cultura da morte. Soube enxergar que a filha é uma jóia preciosa que Deus a enviou. São exemplos como esse que nos fazem acreditar que se cumpre a Constituição Federal, cujo fundamento primeiro é a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III). Como são sábias e simples as mães que amam! Ensinam-nos com ternura que a verdadeira dignidade do ser humano é ser “jóia de Deus”, mais que isso, filho e filha de Deus.
O drama vivido por essa mãe e a valentia com que o enfrentou nos propõe a seguinte indagação: para que geramos os nossos filhos? Com valentia, disponhamo-nos a responder sinceramente. Que almejamos ao trazer essas criaturas ao mundo? Para que sejam adornos na festa de Natal, que não tem graça sem crianças? Para sonhar que um dia estejam na capa da Metrópole, lindos e penteados?
A nossa Constituição Federal, aniversariante de hoje, fala também em paternidade responsável. Contudo, essa expressão tem sido tratada como sinônimo de controle da natalidade. De fato, em alguns casos, ter muitos filhos sem condições, nem disponibilidade para educá-los é uma irresponsabilidade. Mas há também, por outro lado, muitos pais abastados de filhos únicos que são uns tremendos irresponsáveis por não dedicarem um tempo a estar com eles, por não estarem presentes na hora em que eles vão dormir, por não serem uns olhos que brilham na multidão de pais nas apresentações escolares, enfim, por trabalharem vinte e quatro horas por dia para “darem o melhor ao filho”, esquecendo-se, contudo, que, muitas vezes, o melhor para o filho são eles próprios, sua presença amável e serena.
Por certo que a Celiana sabe disso: “Quando alguém tenta me colocar para baixo me dizendo ter pena dela ou de mim, eu olho para o seu rostinho e vejo que ali só existe amor (...) Eu estou sempre de braços abertos para receber mais pessoas que queiram lutar com a gente. O diferente é essencial para a continuidade da vida”.

De fato, cara mãe, nenhum ser humano é igual ao outro, mas todos, uma vez concebidos, têm direito de nascer e viver. Afinal, a vida é sempre desejada, por mais que seja errada. E hoje, fitando o rostinho amável da Milena, homenageamos a nossa Constituição Federal cantando a beleza de sermos eternos aprendizes, enquanto gritamos, ainda que desafinados: “é bonita, é bonita e é bonita”.