segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Confissão de um delito

Poucos dias antes do Natal fiz algo de reprovável, um fato do qual deveria estar muito arrependido, embora não o esteja, e exatamente por isso, ou seja, por não conseguir que minha consciência me acuse disso, gostaria de me confidenciar com o leitor.
Fiz um passeio ao shopping com uma de minhas filhas. Foi uma tragédia. Invadida por uma fúria consumista, ela escolheu três presentes de Natal e, não bastasse isso, os queria naquela hora e não quando o Papai Noel viesse... E tome esperneios, choros e gritos de "eu quero!". Com aquele rubor de pai mal-sucedido, sem coragem de olhar para os lados e topar com alguém que observasse a cena, tomei-a no colo sob muitos protestos, saí da loja e voltei para o carro sem muitas palavras. Gastei todo o tempo do trajeto pensando em como agir quando chegasse a casa.
Lá chegando, coloquei-a sobre uma cadeira defronte da minha e comecei a empregar todas as técnicas que em livros e cursos de educação infantil aprendemos eu e minha esposa. Iniciei por explicar o porquê da recusa: "Filha, não é bom para você que fiquemos comprando muitos presentes a toda hora, ganha-se um presente apenas porque eu e a mamãe te amamos muito e não se ama muito quando se faz tudo o que você quer...". "Mas eu quero", retrucou ela e acrescentou: "vocês não gostam de mim, pois se gostassem teriam comprado".
Vendo que os argumentos não convenciam, passei então à "técnica do disco riscado". É que não se vence com argumentos uma criança. Ela dizia que os irmãos têm tudo e ela não, que gosta dos três brinquedos, que se fosse o irmão mais novo teria ganho, e outras frases do gênero. Ao que eu respondia, como um disco riscado: "não compro porque te amo muito e isso não é bom para você".
Como os gritos quase ensurdeciam todos na casa, levei-a ao quarto, onde ficaria até que se decidisse a conversar "civilizadamente". Foi em vão. Voltou à sala, onde agora tentávamos jantar e, de sobra, toma o prato que lhe estava reservado em um lugar na mesa e atira no chão. Arrancando do fundo da alma uma paciência que ordinariamente não tenho, indaguei a mim mesmo: e agora?
Lembrei-me então de uma pergunta que fiz à educadora Manoum Chimelli em um seminário sobre educação de filhos, do qual participei na UNICAMP, o nome do evento era "Alegrias e Desafios na Educação de Adolescentes". Naquela ocasião eu quis saber se, afinal, é correto ou não bater nos filhos para educá-los. Ela me respondeu que o que se visa na educação é o bem de quem se educa, e o fim a ser alcançado é que o educando venha a ser uma pessoa feliz e responsável, apta a ter sua dignidade reconhecida, mas que respeite igualmente a dos demais. E depois não me deixou sem resposta e disse que há que se evitar bater, pois é melhor a conversa afetuosa e firme, o carinho sereno e exigente, mas, como último recurso, disse: "não se acanhe, a nossa mão entreaberta tem o formado côncavo, o bumbum da criança é convexo, de modo que foram feitos um para o outro".
Pensei que fosse chegado o momento. Com muito esforço, foi uma palmada apenas, daquelas que doem na criança e muito mais no nosso coração. Em suma, uma, mas das bem dadas. Seguiu-se mais choro e soluço. Porém, após alguns minutos no quarto, voltou ela com os olhinhos lavados e o rosto vermelho: "Pai, você me desculpa?".
Talvez alguns dos leitores podem pensar que poderia resistir um pouco mais e resolver o problema sem bater, outros, porém, estão a pensar que teriam dado a palmada bem antes. De qualquer forma, porém, duvido que se pense que eu tenha feito algo de muito errado, extremamente reprovável.
No entanto, isso não é o que pensam nossos parlamentares. Está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 2.654/2003 que proíbe qualquer forma de punição corporal a crianças e adolescentes. E a lei é enfática em coibir os castigos, sejam moderados ou imoderados. Mais ainda, o projeto acrescenta o artigo 18B no Estatuto da Criança e do Adolescente segundo o qual os pais e professores que empregarem castigos corporais, ainda que com fins pedagógicos, ficarão sujeitos a encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família, a tratamento psicológico ou psiquiátrico, a cursos ou programas de orientação ou ainda obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado.
Pobre de mim! E agora, o que eu faço? Pior, conheço o Juiz da Infância e Juventude desta Comarca e sei que ele lê esta coluna...

Penso que devemos falar um pouco mais a sério sobre isso em outras oportunidades.

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

A “legalização” do aborto

Na semana passada, abordamos a questão da tutela da vida humana no nosso ordenamento jurídico, em especial, o momento a partir de quando há, para o direito, um novo ser. Naquela ocasião concluímos que a vida está assegurada desde a concepção. E diante daquela conclusão, a indagação que nos resta é: como então “legalizar” o aborto se a vida é assegurada desde a concepção?
Antes de esboçarmos uma conclusão, é necessário entender a diferença essencial que há entre ser lícita (legal) uma conduta e, ao mesmo tempo, ser ou não ser crime essa mesma conduta. Isso porque nem tudo o que não é crime é lícito, correto. Por exemplo, se alguém compra um bem qualquer e se compromete a fazer o pagamento em prestações, mas, posteriormente, decida não mais pagá-las, comete algum crime? A resposta é não, pois o Código Penal e nem outra lei qualquer não define isso como crime. Pode-se então concluir que está correto deixar de cumprir os compromissos a que nos obrigamos, pois não acontecerá nada? Também não. Não é crime, mas nem por isso deixa de ser ilícita a conduta. Nesse caso, o devedor poderá perder o bem que comprou, poderá ter seus bens penhorados, o vendedor, em tese, poderá incluir o seu nome nos cadastros do SCPC, dentre outras conseqüências.
Outro exemplo. O Código Penal, no Título II da sua Parte Especial, trata dos crimes contra o patrimônio, dentre eles está o furto e o estelionato. No artigo 181, porém, o mesmo código dispõe que não podem ser punidos por esses crimes se forem cometidos pelo descendente contra o ascendente. Isso equivale a dizer que se o filho furtar um bem do pai, ou cometer estelionato contra ele, não poderá ser punido por isso. Nesse caso, alguém ousaria dizer que é lícito ao filho furtar um objeto do pai? Claro que não. E se subtrair o veículo do pai, esse não poderá fazer nada? Claro que sim, poderá solicitar judicialmente a busca e apreensão do veículo, o que, por certo, seria deferido prontamente.
Esses dois exemplos ilustram claramente, mesmo aos não versados em direito, que nem tudo que não é crime é lícito, correto. E quanto ao aborto, o que sucede?
Atualmente, a conduta é definida como crime nos artigos 124 a 127 do Código Penal, o que equivale a dizer que, quem o pratica está sujeito a uma pena, de uma forma mais singela, poderá ir para a cadeia se o praticar.
Assim, quanto se fala em legalizar o aborto, na verdade o que se pretende é descriminalizar, vale dizer, que deixe de ser crime. Tanto assim o é que o Projeto de Lei 1.135/91, que tramita no Congresso Nacional, em seu artigo 2º, limita-se a revogar o artigo 124 do Código Penal.
Penso que a aprovação desse projeto, porém, consistirá num flagrante atentado à vida humana. Isso porque, embora o aborto não será nunca uma conduta lícita em nosso ordenamento, pois, como já afirmamos, a vida merece proteção legal desde a concepção, na prática, o nascituro ficará totalmente sem meios de defesa de seu direito à vida.
O comerciante que não recebe aquilo a que tem direito, pode contratar um advogado e, com isso, obter a satisfação de seu crédito. O pai que for vítima de furto praticado pelo filho também tem meios de haver o seu bem de volta. Mas se o aborto deixar de ser crime, alguém espera que o embrião, saia do ventre daquela que o deveria proteger e contrate um advogado para que defenda o seu direito de viver?
Precisamos de um mundo mais humano, em que a mulher seja tratada com respeito, em que lhe seja assegurada a dignidade em todos os aspectos, que seja amparada na gravidez desejada ou indesejada, enfim, que não lhe atormente a angústia de estar só no momento em que trará um novo ser ao mundo. Afinal, estimulá-la a matar o filho que traz no ventre porque não o desejava é o mesmo que instá-la a matar um já nascido porque lhe traz incômodos.
De fato, a segunda situação parece mais grave. Mas a maior gravidade que pintamos decorre de que, na criança nascida, vemos claramente uma nova vida, que ri, que chora, que pulsa... Mas aos que se rendem a esses hipócritas argumentos de que “o que os olhos não vêem, o coração não sentem”, convido-os a observar uma criança numa sessão de ultra-sonografia. E então verão um ser que se mexe, um coração pulsa, enfim, um ser humano que, acima de tudo, traz um irreprimível anseio de vida.


terça-feira, 17 de janeiro de 2006

A tutela jurídica da vida

Está em tramitação no Congresso Nacional há longa data, mas, ao que parece, agora com mais força, o Projeto de Lei nº 1135/91, que tem sido tratado como uma tentativa de “legalizar” o aborto no Brasil.
O tema é complexo e exige análise mais profunda. Diante disso, pretendo hoje me ater a uma análise acerca de como e a partir de que momento a lei protege a vida humana, e, na semana seguinte, voltaremos a tratar mais especificamente do aborto, também com um predominante enfoque jurídico.
A nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º consagra que Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Portanto, a Lei Maior do País consagra de maneira irrevogável o direito à vida.
Além disso, o direito à vida está inserido entre os dispositivos imutáveis da Constituição Federal. Como se sabe, a Constituição é passível de reforma, através de emendas. Porém, o artigo 5º, por tratar de direitos e garantias fundamentais, não pode sequer ser modificado, pois se trata de uma das chamadas “cláusulas pétreas”.
Sendo assim, um ponto muitíssimo importante para o direito é definir o momento a partir de quando se pode considerar que há uma nova vida humana. Isso porque, a partir de então, qualquer forma de destruição dela será necessariamente ilícita e repugnada por nosso ordenamento jurídico, que tutela a vida humana como um direito fundamental.
Penso que a vida humana começa no exato momento da concepção. Como disse, porém, tentaremos fazer uma abordagem jurídica do assunto, e, fiel e esse compromisso, a questão que se coloca é: quando inicia a vida humana para o direito?
O mencionado artigo 5º da Constituição Federal não esclarece. Simplesmente defende a vida, sem mencionar a partir de quando. Apesar disso, resta claro em outras normas que fazem parte de nosso sistema jurídico, que a vida merece proteção desde a concepção.
A Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos, mais conhecido como Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 4º assegura que Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ter proteção pela lei e, em geral, desde o momento da  concepção. Vemos, pois, aqui uma primeira regra clara no sentido de que a vida deve ser protegida desde a concepção.
O Novo Código Civil, em seu artigo 2º dispõe que: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Ora, se o nascituro tem, desde a concepção, direitos, como sustentar que o Direito sem o qual não há outros, que é o direito à vida, não lhe esteja assegurado também desde a concepção?
Mas não é só. O Código Civil, em seu artigo 1.798, trata das pessoas que podem receber por herança, e, ao fazê-lo, assegura tal direito aos herdeiros já nascidos ou concebidos no momento da morte do autor da herança. Ora, a vingar a tese de que a vida humana se inicia em momento posterior ao da concepção, chegaríamos à ridícula conclusão de que o nascituro já concebido não teria direito à vida, mas, se viver, ou melhor, se não o matarem no ventre materno, terá direito à herança. O absurdo é patente. O que é mais importante, o direito à vida ou à herança? Como então sustentar que desde a concepção se tem direito à herança, mas, o direito à vida, sem o qual não se receberá herança alguma, ainda não existe?
Sendo assim, se a vida humana é assegurada pela Lei Maior de nosso País, e se essa vida é tutelada desde a concepção, como pode ser “legalizado” um atentado a esse direito, como é o aborto? Como disse, trataremos do assunto na próxima semana.
Antes, porém, concluo pedindo desculpas ao leitor, em especial àqueles que não estudaram direito, pelo texto denso de enfadonhas citações legislativas. Mas o faço para que todos, não apenas os versados em ciências jurídicas, tenham claro que a vida está tutelada desde a concepção.
Por certo que não faltarão vozes discordantes, no entanto, como dizia poeticamente o saudoso Drummond, “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã.”


terça-feira, 10 de janeiro de 2006

Outdoors

Na última quarta-feira, o Correio Popular trouxe uma matéria acerca de projeto de lei do vereador Antônio Carlos Chiminazzo, intitulado “Lei quer barrar nu e até biquíni em outdoor”. O tema tem levantado polêmica, o que é saudável numa democracia. No entanto, penso que as críticas levantadas são de todo injustas.
O projeto proíbe exposição publicitária de modelos femininos ou masculinos nus e seminus ou em pose que sugira nudez parcial ou total em painéis. Penso que a norma é de extrema conveniência e não há nela qualquer inconstitucionalidade.
Um dos argumentos contrários ao projeto é que estaria a promover a censura. Ouso, porém, dele discordar. De fato, a Constituição Federal, no seu artigo 220, § 2º, proíbe qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. O mesmo artigo, contudo, em seu § 3º, e o artigo 221, são claros em dispor que os programas ou programações de rádio e televisão, bem a propaganda de produtos devem guardar respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Portanto, não há, nesse aspecto, qualquer inconstitucionalidade no projeto.
Outra questão que se levantou seria a ausência de competência legislativa do Município, pois somente a União poderia legislar a respeito. Penso, porém, que tampouco essa tese seja sustentável.
De fato, o aludido artigo 220 da Constituição Federal estabelece que cabe à lei federal, dentre outras, coibir as propagandas nocivas. Além disso, o artigo 24, inciso XV dispõe que cabe à União e aos Estados, legislar concorrentemente sobre proteção à infância e à juventude, aparentemente, excluindo os Municípios.
No entanto, o artigo 30 da Constituição Federal estabelece que compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber. Assim, se é atribuição do Poder Público, em seus três níveis, União, Estados e Municípios, tomar medidas em tutela dos direitos da criança e do adolescente, também esses podem instituir normas suplementares às federais e estaduais, contanto que não as contrariem, para, em atenção às peculiaridades do município, instituir normas protetivas dos direitos das crianças e adolescentes.
E no caso do aludido projeto, não há qualquer contradição com a legislação federal nem estadual. Ao contrário, os artigos 81 e 78 do Estatuto da Criança e Adolescente, são claros em coibir o acesso de crianças ou adolescentes a propagandas pornográficas ou que contenham mensagens obscenas. Nesse sentido, a lei municipal somente viria a implementar o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Os outros argumentos contrários são ainda menos sustentáveis. Dizem que “Campinas é uma cidade progressista e moderna e não combina com este tipo de censura”. Ora, é progressista a publicidade que estimula precocemente o contato de crianças e adolescentes com imagens indecentes? Ao contrário, seria retrógrado manter um ambiente de pudor, apto a proporcionar-lhe uma educação saudável?

Penso que o próprio consumidor já está farto dos anúncios que sugerem algo do tipo: “compre o carro e leve a mulher de brinde”. Há outras formas muito mais criativas de se anunciar os produtos sem os apelos para uma sexualidade degradante. Aliás, em um ponto apenas não concordo com o nobre vereador autor do projeto. É quando afirma que a lei atende pedidos de campineiros ligados à Igreja Católica. Muito mais que isso, a lei atende aos anseios de resgate da dignidade da pessoa humana, o que, além de ser um direito natural, vem assegurada no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2006

Feliz ano novo

No fim do ano que passou, aventurei-me a conversar um pouco com o Sr. Cândido. Já fazia um ano que não falava com ele, acho que a última vez foi no final do ano passado. Já de idade avançada, ele é o menos procurado nas rodas de bate-papo que se formam na ceia de Reveillon, talvez porque o desenrolar das idéias em sua mente seja lento, de modo que suas histórias, muitas repetitivas, saem pausadas, totalmente incompatíveis com o ritmo da comunicação na era da informática. Mas dessa vez ele estava mais filosófico e menos prosaico que de costume. E penso que suas palavras merecem ser refletidas, de modo que tentarei ser o mais fiel possível ao que dele ouvi informalmente e sem maiores preocupações.
“Feliz ano novo” – começou ele, “há anos que ouço isso, mas agora me ponho a pensar no comprimento dessa frase. De algumas pessoas, sabemos que é bem curtinha, é formada na boca de quem a diz e chega aos nossos ouvidos sem muita força, tal como se ouve bom dia sem o menor desejo de que nosso dia seja bom de verdade”.
“Outros, tentam elaborar a frase um pouco melhor, do tipo: feliz ano novo, Sr. Cândido, muita paz, muita saúde, o importante é ter saúde, o resto a gente dá um jeito. E fico a pensar” – prosseguiu ele – “o que essa pessoa diria para um doente num hospital, pior, um daqueles que têm uma doença grave e incurável? Se o importante é ter saúde, esse pobre coitado sequer um feliz ano novo não poderia lhe ser desejado”.
O Sr. Cândido estava de verdade diferente dessa vez, mais emocionado, mas não tristonho, nem pessimista. Agora que ganhou muito mais minha atenção que com as velhas histórias, continuou dono da conversa: “nesses dias, as pessoas se aventuram a querer dar o que não têm. Desejam felicidade, mas elas mesmas não sabem onde encontrá-la; desejam paz, mas muitos duvidam que ela exista; e para piorar, pensam que a felicidade sem saúde é impossível. Que visão curta de felicidade!”
“Sabe, filho, depois desses anos todos eu aprendi que todo mundo deseja felicidade com grandes foguetórios no final do ano para abafar uma voz interior que os acusa de não a ter encontrado novamente nesse ano que se finda... No ano novo, talvez... Dizem como que para tapar a boca daquela voz que insinua dizer novamente: está no caminho errado”.
Será que ele descobriu alguma receita mágica? E pus-me a pensar, agora que o Sr. Cândido parece ter posto toda a sua experiência em dar lições de vida. “Cuide das pequenas coisas” – começou ele agora a dar conselhos. “As pessoas ficam colocando a felicidade em imaginações muito distantes e se esquecem que ela está em coisas pequenas, como apreciar a beleza de um pôr-do-sol, em divertir-se com uma criança, em visitar um amigo com quem há tempos não se fala, em fazer o trabalho com alegria, esforçando-se por servir as pessoas que dele dependem”.
“Não é a saúde o que importa. Conheço muitos moços de muito boa saúde e que a desperdiçam se embriagando nesses dias, deixando como legado para o ano novo uma ressaca e um vazio interior maior que o do ano que se passou. Ao contrário, sei de outras tantas com graves problemas de saúde, muito debilitadas, mas que levam para o ano novo uma grande bagagem formada por muitos sorrisos, palavras doces e de conforto, enfim, de minutos bem vividos e bem aproveitados.
“Nem sei por que me ocorreu pensar nessas coisas” – fez ele agora uma pausa, à moda de suas antigas histórias. “Na verdade eu sei. É que um amigo meu me convidou para que o acompanhasse em uma entrega de um presente que faria a um amigo dele. Era um daqueles pais de família feliz. A casa era modesta, simples mesmo, mas o ambiente muito aconchegante. Os filhos iam e vinham, fazendo suas travessuras saudáveis, sob o olhar de terna repreensão do pai. Ali não se encheriam a cara de bebida e de comida na ceia. Comemorariam a data, é claro, mas com sobriedade, todos ajudando na preparação, e, depois do jantar, todos participando do serviço de arrumação e limpeza. Foi o feliz ano novo mais comprido que recebi. Aquele homem bom não me disse nada, apenas deu-me um afetuoso aperto de mão enquanto que, sem palavras, eu lia estampado nos seus olhos: essa felicidade está ao alcance de todos, ao menos dos que tentam ser mansos e humildes de coração”.

Do coração, um feliz ano novo a todos!