Poucos dias antes do Natal fiz algo de reprovável, um
fato do qual deveria estar muito arrependido, embora não o esteja, e exatamente
por isso, ou seja, por não conseguir que minha consciência me acuse disso,
gostaria de me confidenciar com o leitor.
Fiz um passeio ao shopping com uma de minhas filhas.
Foi uma tragédia. Invadida por uma fúria consumista, ela escolheu três
presentes de Natal e, não bastasse isso, os queria naquela hora e não quando o
Papai Noel viesse... E tome esperneios, choros e gritos de "eu
quero!". Com aquele rubor de pai mal-sucedido, sem coragem de olhar para
os lados e topar com alguém que observasse a cena, tomei-a no colo sob muitos
protestos, saí da loja e voltei para o carro sem muitas palavras. Gastei todo o
tempo do trajeto pensando em como agir quando chegasse a casa.
Lá chegando, coloquei-a sobre uma cadeira defronte da
minha e comecei a empregar todas as técnicas que em livros e cursos de educação
infantil aprendemos eu e minha esposa. Iniciei por explicar o porquê da recusa:
"Filha, não é bom para você que fiquemos comprando muitos presentes a toda
hora, ganha-se um presente apenas porque eu e a mamãe te amamos muito e não se
ama muito quando se faz tudo o que você quer...". "Mas eu
quero", retrucou ela e acrescentou: "vocês não gostam de mim, pois se
gostassem teriam comprado".
Vendo que os argumentos não convenciam, passei então
à "técnica do disco riscado". É que não se vence com argumentos uma
criança. Ela dizia que os irmãos têm tudo e ela não, que gosta dos três
brinquedos, que se fosse o irmão mais novo teria ganho, e outras frases do
gênero. Ao que eu respondia, como um disco riscado: "não compro porque te
amo muito e isso não é bom para você".
Como os gritos quase ensurdeciam todos na casa, levei-a
ao quarto, onde ficaria até que se decidisse a conversar
"civilizadamente". Foi em vão. Voltou à sala, onde agora tentávamos
jantar e, de sobra, toma o prato que lhe estava reservado em um lugar na mesa e
atira no chão. Arrancando do fundo da alma uma paciência que ordinariamente não
tenho, indaguei a mim mesmo: e agora?
Lembrei-me então de uma pergunta que fiz à educadora
Manoum Chimelli em um seminário sobre educação de filhos, do qual participei na
UNICAMP, o nome do evento era "Alegrias e Desafios na Educação de
Adolescentes". Naquela ocasião eu quis saber se, afinal, é correto ou não
bater nos filhos para educá-los. Ela me respondeu que o que se visa na educação
é o bem de quem se educa, e o fim a ser alcançado é que o educando venha a ser
uma pessoa feliz e responsável, apta a ter sua dignidade reconhecida, mas que
respeite igualmente a dos demais. E depois não me deixou sem resposta e disse
que há que se evitar bater, pois é melhor a conversa afetuosa e firme, o
carinho sereno e exigente, mas, como último recurso, disse: "não se
acanhe, a nossa mão entreaberta tem o formado côncavo, o bumbum da criança é convexo, de modo que foram feitos um para o
outro".
Pensei que fosse chegado o momento. Com muito
esforço, foi uma palmada apenas, daquelas que doem na criança e muito mais no
nosso coração. Em suma, uma, mas das bem dadas. Seguiu-se mais choro e soluço.
Porém, após alguns minutos no quarto, voltou ela com os olhinhos lavados e o
rosto vermelho: "Pai, você me desculpa?".
Talvez alguns dos leitores podem pensar que poderia
resistir um pouco mais e resolver o problema sem bater, outros, porém, estão a
pensar que teriam dado a palmada bem antes. De qualquer forma, porém, duvido
que se pense que eu tenha feito algo de muito errado, extremamente reprovável.
No entanto, isso não é o que pensam nossos
parlamentares. Está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.
2.654/2003 que proíbe qualquer forma de punição corporal a crianças e
adolescentes. E a lei é enfática em coibir os castigos, sejam moderados ou
imoderados. Mais ainda, o projeto acrescenta o artigo 18B no Estatuto da
Criança e do Adolescente segundo o qual os pais e professores que empregarem
castigos corporais, ainda que com fins pedagógicos, ficarão sujeitos a
encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família, a
tratamento psicológico ou psiquiátrico, a cursos ou programas de orientação ou
ainda obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento
especializado.
Pobre de mim! E agora, o que eu faço? Pior, conheço o
Juiz da Infância e Juventude desta Comarca e sei que ele lê esta coluna...
Penso que devemos falar um pouco mais a sério sobre
isso em outras oportunidades.