quarta-feira, 1 de março de 2006

Quaresma

Inicia-se hoje, quarta-feira de cinzas, o tempo da quaresma. O Papa Bento XVI, no domingo passado, durante a tradicional reza do ângelus, lembrou a todos fiéis que esse tempo constitui “um grande memorial da paixão do Senhor, em preparação para a Páscoa da Ressurreição”. O Santo Padre lembrou também que a quaresma “não deve ser vivida como uma tarefa pesada e incômoda”, mas com “o espírito novo de quem encontrou em Jesus o sentido da vida”.
Em não raras vezes, nós, brasileiros, nos gabamos de dizer que o Brasil é a maior nação cristã do mundo. Porém, fazendo eco das palavras do Papa, penso que devemos nos questionar acerca de que tipo de cristianismo que estamos vivendo. O próprio Cristo, dentre os muitos ensinamentos que nos legou, deixou a condição para ser seu discípulo: “Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mc 8, 34).
A mensagem do Evangelho é tão clara que não há margem para interpretações que a anulem. Tomar a cruz de cada dia é, pois, condição essencial para seguir o Mestre. Assim, não se pode dizer que é cristão quem não esteja disposto a renunciar o afã de uma vida cômoda, aburguesada, para aceitar por amor as contrariedades que marcam o dia-a-dia.
Mas, diante do preceito, poderíamos nos perguntar: quais são as cruzes que devemos abraçar em pleno século XXI?
A resposta a essa indagação não é substancialmente diferente da que daria um cristão dos primeiros tempos do cristianismo. Ou seja, a cruz de cada dia que devemos abraçar são as contrariedades que marcam nosso cotidiano, seja ele qual for.
Será, por exemplo, o esforço por atender com cordialidade aos que nos procuram durante o nosso trabalho, ainda que as interrupções constantes atrapalhem a execução das tarefas que nos cabem.  As contrariedades consistirão em aceitar os defeitos do colega de trabalho, do marido, da esposa, sabendo que todos também temos muitos e talvez, com os nossos também incomodamos os demais.
Certa vez, um amigo meu pretendia fazer uma grande penitência na quaresma que agora não me recordo bem, mas acredito que fosse não comer carne durante todo esse período, e resolveu consultar o seu diretor espiritual acerca da conveniência disso. Esse respondeu ao meu amigo prontamente: “olha, acredito que seja um pouco exagerado não comer carne na quaresma inteira, pior, a penitência vai ser mais de sua esposa que sua, pois ela vai ter de ficar pensando o tempo todo no que pode e não pode fazer nas refeições”. Em seguida, aconselhou-o: “Por que você não se esforça por atender sempre com um sorriso às pessoas que atende em sua repartição? Ou, melhor ainda, faça o propósito de não brigar com a esposa nem falar com os filhos em tom de reclamação durante essa quaresma”.
E, falando em defeitos das pessoas com quem convivemos, uma boa cruz é corrigi-las, com respeito, no momento oportuno, mas com o propósito de ajudá-la a melhorar. Acontece que nós, muitas vezes, comentamos com terceiros acerca de um hábito negativo de um amigo, parente ou cônjuge, e, no entanto, somos covardes e sem coragem de dizer ao próprio interessado, e apenas a ele, o seu defeito para que possa melhorar.
As cruzes poderão vir, por vezes, de acontecimentos desagradáveis, mas que, no momento, não há nada que fazer. Será um carro que quebra, uma chuva que nos apanha no meio da rua, um revés econômico com que não contávamos, enfim, por diversos modos. E, diante disso, podemos assumir duas posturas antagônicas: esbravejar, reclamar, deixar-se dominar pelo mau humor; ou, como bom cristão, aceitar como oportunidade para crescer nas virtudes da paciência, da sobriedade, da humildade, do respeito.

Agora para concluir, gostaria de contar o fim da tragédia do meu amigo que queria ficar a quaresma toda sem comer carne. Depois de uma semana tentando cumprir a indicação que o sacerdote lhe deu, voltou ele com cara de derrotado: “Padre, não dá para trocar a penitência? Eu havia pensado em ficar os quarenta dias apenas comendo chuchu nas refeições e jaca de sobremesa, pois acho que isso eu conseguirei cumprir”.

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