segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Confissões de um juiz

Contemplando o incidente ocorrido no Supremo Tribunal Federal por ocasião do início do julgamento do “mensalão”, invadiu-me um profundo desejo de compartilhar com o leitor o que se passa na cabeça de um juiz no ato de decidir. Não comentarei o caso, nem tampouco falarei de processos que eu tenha de decidir pessoalmente. Porém, para melhor ilustrar, falarei de um litígio já decidido, até porque a lei (artigo 36, inciso III da Lei Orgânica da Magistratura) proíbe que me manifeste somente sobre processo pendente de julgamento, não sobre os já julgados.
Certo dia, estava eu intrigado com um caso que teria de decidir. Tratava-se de um seguro de vida, cujas parcelas do prêmio deveriam ser debitadas todo dia 4 de cada mês em conta corrente. Naquele mês, o dia 4 caiu num sábado. No domingo, dia 5, o segurado faleceu. Na segunda-feira, dia 6, a parcela do prêmio não foi debitada na conta, por ausência de fundos. Com o argumento de que não foi paga essa parcela, a seguradora negou o pagamento da indenização.
Li e reli o caso. Estava inconformado, sentindo-me de mãos atadas, pois não me parecia justo negar a indenização, afinal a morte ocorreu antes da data em que poderia ser paga a parcela do prêmio. Porém, havia uma cláusula que previa que se o vencimento ocorresse em um dia sem expediente bancário, prorrogava-se o vencimento para o primeiro dia útil seguinte, ficando o pagamento da indenização condicionado ao pagamento dessa parcela.
Meu filho, então com sete anos, que fazia lição ao meu lado no escritório, notou a minha inquietação e quis saber o motivo. Relatei o caso a ele, explicando com uma linguagem que pudesse entender. Poucos minutos após, com a sabedoria e a simplicidade que apenas as crianças têm, ele me perguntou: “Pai, qual é o valor que a mulher do homem que morreu quer receber?”. “Cinqüenta mil reais”, respondi. “Quanto que teria que ter pago na segunda-feira?”. “Cinqüenta e quatro reais”, respondi sem suspeitar o que ele queria dizer. Em seguida, voltou a perguntar: “Pai, quanto é cinqüenta mil menos cinqüenta e quatro?”.
“É isso!”, exclamei. Esse garoto matou a charada. Há um instituto jurídico chamado compensação. Se no domingo o segurado já era credor, não precisaria pagar a parcela na segunda-feira, pois os débitos se compensam. Em seguida abandonei a simplicidade da criança e voltei a redigir a sentença com citações de artigos de lei, jurisprudência etc.
Há poucos dias, atormentava-me com uma questão jurídica e, por conseqüência, com a justiça da decisão que seria dada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Não hesitei em ir conversar com o colega que participaria da decisão do recurso. No debate e na troca de opiniões surgiram idéias que permitiram construir uma decisão que, naquela situação, parece a mais justa, sem fugir do que determina a lei.
O juiz não é um ser extraterrestre, insensível aos reclamos do povo, totalmente alheio à opinião pública. De fato, a sua preocupação maior deve estar em fazer justiça. Ele deve prestar contas, em primeiro lugar, a sua própria consciência. Mas tem dúvidas e inseguranças. Por vezes, sente o peso quase que insuportável das conseqüências da decisão que terá de proferir.
Não há inconveniente em comentar com os colegas que no Tribunal terão de decidir o mesmo caso, pois isso enriquece o conhecimento e possibilita construir melhor a decisão, após ser mais detidamente refletida e analisada.
Porém, todo juiz tem de se examinar a si próprio acerca de qual é o fim realmente visado em cada decisão: fazer justiça, dando a cada um o que lhe é devido? Ou preservar a própria imagem, dando asas à vaidade para que todos o considerem uma pessoa culta, sábia etc?

Por fim, o juiz deve ser muito cauteloso ao escolher com quem pode tratar de suas dúvidas e dificuldades. Todos conheceram a história de Pilatos, que ao julgar foi pedir a opinião de uma multidão encrespada: “querem que vos solte Barrabás?”. E os maus conselheiros responderam que SIM. E o juiz, fraco e mal aconselhado, lava as mãos (como se isso atenuasse sua responsabilidade) e deixa que executem a sentença mais injusta que a humanidade já conheceu.

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