Na
última quinta-feira os cristãos católicos comemoraram a festa do Corpus Christi. Em todo o País foram
celebradas Missas em espaços públicos, com grandes concentrações de pessoas,
que também tomaram as ruas e praças em longas procissões, em que os fiéis
manifestam publicamente a sua fé. Ao contemplarmos esses fatos, talvez possa
surgir uma indagação: o feriado nacional ou a ocupação dos locais públicos para
essa finalidade é possível num Estado laico?
De
fato, a nossa Constituição Federal, em seu artigo 19, inciso I, institui o
princípio da separação entre o Estado e as entidades religiosas. Com isso, o Poder Público não pode
estabelecer cultos ou igrejas, sustentá-las com recursos públicos, como também
não pode impedir que funcionem livremente. Evidentemente, se essas entidades
prestam algum serviço público relevante, podem ser apoiadas pelos Estado,
inclusive com recursos públicos. Por exemplo, imaginemos que uma comunidade
espírita, ou evangélica, ou católica mantenham uma escola ou uma creche que
atenda a crianças carentes. Nesse caso poderão receber verbas públicas para
essa finalidade. Não poderão, contudo, usar dessa verba para manter seus
ministros enquanto tal, nem para prover com as despesas do templo ou local de
reuniões.
Aliás,
para os cristãos, essa separação está também disposta na sua “Lei Maior” que
são os Evangelhos: as autoridades
mandaram alguns fariseus e alguns partidários de Herodes, para apanharem Jesus em alguma palavra. Quando
chegaram, disseram a Jesus: “Mestre, sabemos que tu és verdadeiro, e não dás
preferência a ninguém. Com efeito, tu não olhas para as aparências do homem,
mas ensinas, com verdade, o caminho de Deus. Dize-nos: É lícito ou não pagar o
imposto a César? Devemos pagar ou não?” Jesus percebeu a hipocrisia deles, e
respondeu: “Por que me tentais? Trazei-me uma moeda para que eu a veja”. Eles
levaram a moeda, e Jesus perguntou: “De quem é a figura e inscrição que estão
nessa moeda?” Eles responderam: “De César”. Então Jesus disse: "Dai, pois,
a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E eles ficaram admirados
com Jesus (Mc, 12, 13-17).
Com
isso, estabelece-se as bases de uma verdadeira separação. O Estado não deve se intrometer
nas entidades religiosas, e essas não devem intervir em questões temporais
mutáveis e relativas.
Nesse
sentido, penso que os líderes religiosos, ao ensinarem seus seguidores, podem
legitimamente condenar ideologias que forem contrárias às suas convicções, ou
mesmo orientar seus membros a agirem na vida pública e exercerem os direitos de
cidadania de forma coerente com o que crêem. Não é legítimo, porém, que tenham
partido oficial ou que apóiem abertamente esse ou aquele candidato, numa
espécie de mensagem subliminar: “votem nele em nome de Deus ”. Isso
seria um abuso do poder religioso e é de se lamentar que a legislação eleitoral
não proíba essa prática.
Estado
laico não se confunde, contudo, com um ateísmo imposto nem implica que a
religiosidade deva estar trancafiada na esfera estritamente privada, como se os
cristãos devessem voltar às catacumbas, por exemplo. Manifestar publicamente a
fé é um direito natural e o Estado, sem firmar vínculo com nenhum dos credos,
deve facilitar e promover essas iniciativas, na medida em que promovam a
dignidade da pessoa humana.
Não
há qualquer ofensa aos princípios constitucionais que se permita que se monte
provisoriamente numa praça pública uma feira do livro espírita, que uma
comunidade evangélica faça uma encenação numa praça ou que os católicos lotem
as ruas em procissão. São legítimas manifestações públicas da fé de um povo que
podem ser facilitadas pelo Poder Público, conquanto que sejam pacíficas,
respeitem os que pensam diferente e, acima de tudo, que estejam a serviço da
construção de um mundo mais humano, onde reine a justiça e a paz para todos.
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