segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O voto em nome de Deus

Recentemente recebi um correio eletrônico de certo candidato com a seguinte mensagem, ainda que com outras palavras: “se você é católico de verdade vote em mim”. Isso me fez lembrar de um fato ocorrido quando ainda era Juiz Eleitoral. Naquela oportunidade, recebi a denúncia de que um certo ministro religioso, enquanto pregava aos seus fiéis, incitava-os a votarem em determinado candidato. Seriam corretas essas condutas durante o processo eleitoral?
Não pretendemos abordar o assunto estritamente sob o enfoque da legislação eleitoral, mas à luz do princípio da separação entre as entidades religiosas e o Estado.
Penso que o ministro de qualquer entidade religiosa deve ser uma pessoa que orienta os seus fiéis a buscar um sentido transcendente para as suas vidas. Prega e ensina, segundo as suas convicções, quem seria Deus, como se pode buscá-Lo e amá-Lo e também quais seriam os caminhos a serem trilhados para esse fim. Deve fazê-lo, contudo, com profundo respeito à liberdade de cada um, pois o homem é essencialmente livre e não há verdadeira religião se não promove a liberdade humana, inclusive no sentido de que somente se pode buscar a divindade se o fizer livremente.
Nesse sentido, é legítimo que denunciem políticas que contrariem frontalmente suas convicções. Mais ainda, devem orientar seus membros a não votarem em políticos desonestos ou adeptos de programas de governo contrários à dignidade humana. De igual modo, podem orientar seus fiéis a, sem renunciar à liberdade que possuem no exercício do direito do voto, escolherem candidatos comprometidos com os mesmos ideais.
É inaceitável, porém, que um ministro de qualquer entidade religiosa misture o culto e a atividade de formação com campanha declarada a qualquer candidato. É que, nesse caso, soaria nos ouvidos dos fiéis uma mensagem mais ou menos do tipo: “vote nele em nome de Deus”. Ora, ele não possui essa autoridade. É que a escolha, ainda que norteada por uns critérios fundados numa crença religiosa, é sempre um ato pessoal, que toca diretamente na consciência de cada um.
Tampouco é de se prestigiar alianças, declaradas ou veladas, entre entidades religiosas e partidos ou candidatos. Embora se valha do pretexto de eleger políticos que respeitem as convicções de seus fiéis, ou mesmo que aprovem leis que não sejam contrárias a elas, no mais das vezes essas alianças possuem nítido propósito de conquistar um poder político, meramente temporal.
É curioso notar que muitos arautos da construção de um Estado laico não se insurjam contra essa ilegítima tentativa de tomada do poder político por entidades religiosas e, ao contrário, cobrem a todo instante de governantes, parlamentares e magistrados que sejam neutros no exercício de suas funções. Ou seja, exigem que deixem sua fé dependurada do lado de fora de onde exercem seus cargos.
Isso, porém, não é legítimo exigir-lhes. Por exemplo, um parlamentar cristão pode e deve votar contra qualquer tentativa de legalização do aborto porque viola o direito à vida e atenta contra a dignidade da pessoa humana, sobretudo da própria mãe que o faz. De igual modo, um magistrado ao decidir questões dessa natureza não conseguirá se despir de sua fé, como se, no ato de julgar, pudesse inserir um chip em seu cérebro que o faça esquecer de tudo o que aprendeu em sua igreja, em sua escola ou em seu lar. Aliás, tampouco o ateu ou o agnóstico se despem de suas convicções materialistas no ato de decidir. É bem verdade que não seria razoável fundamentar uma sentença em versículos do Evangelho e não na lei legitimamente aprovada no País. Mas pode-se e deve-se fazer uma leitura dessa lei de acordo com a sua consciência.

Não é necessário que os cidadãos abandonem suas convicções ou ajam de forma contrária às suas consciências para que, numa democracia, se construa um Estado laico: ao contrário, a perversão ou supressão das consciências deforma a ordem social. Mas é de extrema importância que as entidades religiosas tenham bem claro qual é o seu âmbito de atuação, seja para não violarem a legítima liberdade de seus membros, seja para não se converterem elas próprias em meros instrumentos para se galgar um mero poder político e temporal.

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