segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

“Sou” ou “tenho” um corpo?

Há alguns anos presenciei um debate descontraído entre dois amigos universitários. Falavam sobre a morte e o sentido da vida. Um deles sustentava que o corpo é apenas uma espécie de invólucro que abriga o espírito. O outro, que seguia por uma vertente mais materialista, sustentava: “tudo bem, só que isso que eu sou – e fez um gesto com as mãos apontando para si – eu não serei após a morte”.
O mundo mudou bastante desde então. Vivemos hoje, mais que naquela época, numa sociedade em que predomina a cultura hedonista, que move as pessoas a buscarem o prazer a qualquer custo. Por outro lado, a medicina evoluiu de forma fantástica. No entanto, os avanços não foram apenas no sentido da prevenção e cura de doenças, mas também para criar mecanismos para os indivíduos moldarem o próprio corpo. Já se fala em mudança de sexo.  As cirurgias plásticas não mais se prestam apenas para corrigir anomalias, mas se pode modificar, ao gosto de cada um, a face, os membros, a estatura, a cor da pele etc.
Nesse cenário, como nos vemos a nós próprios nesse conturbado início de milênio? Sou esse corpo animado por uma alma e vivo para um fim transcendente? Ou sou dono desse corpo, moldável ao meu próprio gosto, que me há de servir apenas como instrumento para buscar o prazer?
Esse último postulado é, sem dúvida, um resumo da cultura dominante em nosso tempo, ainda que com variações quanto às formas de manifestação e intensidade. Porém, será ele apto a promover de verdade a dignidade humana?
Um dos aspectos que torna manifesta a contradição dessa concepção é a maneira com que se encara o sacrifício. Essa palavra soa como uma heresia no mundo moderno. Dirão seus adeptos: “Que absurdo perder o tempo criando filhos. Dão trabalho, choram de noite...”. No entanto, submetem-se a dores mais intensas que a do parto em cirurgias plásticas, lipoaspirações etc. Parece absurdo perder noites de sono para cuidar dos filhos pequenos ou doentes, mas se perdem as mesmas noites de sono na internet! No fundo, não é do sacrifício que fogem as pessoas nesse admirável mundo novo. Aliás, quanto sacrifício se faz nas academias de ginástica, nas clínicas de beleza e no próprio trabalho alucinante que rouba todo o tempo que se poderia dedicar à família. Fogem, isso sim, daquele sacrifício abnegado pelo próximo (filho, marido, esposa, amigos) e por amor. Mas estão felizes com esse viver somente para si?
Outra falácia da cultura hedonista está em pregar o “sexo livre” e irresponsável. De fato, se o que importa é apenas o prazer, a sexualidade encontra posição de destaque, afinal, poucas atividades o proporcionam de maneira tão intensa. No entanto, não se preocupa em explicar o “day after”, ou melhor, o “second after” ao ato sexual: o amargo na boca e o vazio na alma de quem abusou e se deixou abusar do próprio corpo como se fora mero objeto, esquecendo-se de sua dimensão afetiva e mesmo racional do ser humano.
O prazer não é ruim nem reprovável. Contudo, é enganoso considerá-lo como um fim em si mesmo. Aliás, com todo o respeito a quem pensa diferente, o ato sexual é muito mais prazeroso para o casal que vive a fidelidade e se esforça, por anos e anos, em fazer o outro feliz, inclusive nesse momento.
Ainda que não seja muito difícil expor as armadilhas da cultura hedonista, não é igualmente fácil responder à indagação a que nos propomos (somos ou temos um corpo?). Apelo, pois, à simplicidade das crianças. A minha filha, Maria Clara, de oito anos, gosta de ir ao cemitério. Numa tarde resolvi indagar: “Filha, como você pode gostar de vir aqui? Ninguém gosta disso, tanto menos com a sua idade”. “Mas eu gosto”, respondeu ela. E depois explicou: “Quando vejo os túmulos dessas pessoas que já morreram fico um pouco triste, mas, ao mesmo tempo, muito contente. Fico triste por pensar que os corpos delas estão enterrados aí em baixo, mas quando penso que elas estão num lugar muito melhor, perto de Deus, isso me deixa muito contente por elas. Além disso, gosto de pensar no dia em que elas terão novamente seus corpos muito lindos no Céu”. Depois de um breve silêncio, completou ela: “foi a minha professora de religião quem me disse que nossos corpos ressuscitarão...”.

Como seria mais simples e belo o mundo se nos inspirássemos na pureza e na simplicidade das crianças!

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