Introdução
É significativo hoje em dia o número de pessoas que
optam por se casar sem a intenção de ter filhos. Diante desse cenário, e
analisando a questão sob uma perspectiva antropológica, é oportuno indagar se
os filhos são livre decisão do casal, que então poderiam optar por tê-los ou
não sem que isso interfira na relação conjugal ou se, ao contrário, o casamento
está naturalmente orientado à geração e educação da prole.
Indagações dessa envergadura não podem ser
adequadamente enfrentadas sem que voltemos o olhar para a natureza humana. O
que são a mulher e o homem em sua essência?
É inegável que uma pergunta dessa magnitude não
permite respostas simplistas. Mas se nos lançássemos sem maiores rodeios ao
núcleo da questão, o que mais acentuadamente caracteriza o ser humano é o amor.
E isso ao menos em dois aspectos, quais sejam, de ser ele o resultado de um ato
de amor e, ao mesmo tempo, o anseio profundo de orientar a sua vida para o
amor.
O amor nas
origens do ser humano
Nenhum ser humano consegue manter uma existência
minimamente equilibrada sem sentir-se e ser de fato amado. Essa realidade se
mostra presente, ainda que com diferentes matizes, nas mais diversas fases da
nossa vida. O homem maduro precisa sentir-se amado por sua esposa, por seus
filhos, estimado e respeitado em seu ambiente de trabalho e no seu círculo de
amizades. O jovem, igualmente, sente a necessidade vital de ser amado por seus
pais, reconhecido e valorizado entre os seus amigos. Quando falta de maneira
significativa essa aceitação (no fundo o que se almeja é o amor) provavelmente
estaremos diante de uma pessoa insatisfeita e infeliz.
Esse anseio por ser e se sentir de verdade amado se
projeta em cada ser humano muito especialmente para as suas origens. Uma prova
disso está no empenho que fazem as pessoas que não foram reconhecidas pelo pai
em encontrá-lo, conhecê-lo e, se possível, estabelecer com ele uma relação
minimamente filial.
Mas mais que isso, todo filho deseja que pai e mãe se
amem. Certa vez um garoto de sete anos, que vivia numa família bem constituída,
presenciou uma pequena discussão entre os pais. Em seguida, com os olhos cheios
de indignação disse ele ao pai: “prefiro mil vezes que você brigue comigo do
que trate a minha mãe dessa forma”.
Quando sustentamos que o ser humano anseia vislumbrar
em sua origem um ato de amor, talvez uma grande objeção que se levante é que
muitos homens e mulheres durante toda a história da humanidade, mas sobretudo
em nosso tempo, não nasceram em um lar formado por genitores que se amam. É
verdade. Mas é igualmente verdade que se está em débito com esses milhares de
seres humanos a quem não se é respeitado esse direito fundamental de nascer no
seio de uma família.
Aliás, tanto mais humana será uma sociedade quando
maior for a sua capacidade de se estruturar para suprir a ausência desse amor
que deveria envolver a vinda de um novo ser ao mundo. Fala-se em adoção,
família extensa, entidades de abrigo, como formas de suprir a existência de um
lar naturalmente formado pelo pai, pela mãe e sua prole. E de fato pode-se
criar uma rede de acolhimento capaz de cercar de imensos cuidados a criança e o
adolescente. Mas tudo isso será sempre paliativos se comparado com o que lhe
proporcionaria um pai e uma mãe que se amam e nesse amor se doam entre si e aos
filhos.
O amor com fim
da existência humana
Se a ausência de amor na origem do ser humano pode
ser suprida, ainda que de modo imperfeito, por outras manifestações de amor que
se desenvolvem no decorrer de sua vida, nada pode suprir o seu anseio por ser
no mundo manifestação desse mesmo amor pelos outros. Ignorar esse dado é lançar
fora toda possibilidade de realização enquanto homem ou mulher.
Diz-se que o homem é um ser social. Com essa
expressão, contudo, muitas vezes pensamos que dependemos dos outros e por esse
motivo vivemos em sociedade. É verdade, há uma mútua dependência entre os seres
de uma comunidade. No entanto, essa dependência é, sobretudo, de
superabundância. Ou seja, mais que extrair dos outros a satisfação de nossos interesses,
precisamos de nos doar desinteressadamente.
Nesse ponto, talvez nos deparemos com outro problema
de razoável fundamento antropológico. É que esse anseio por atuar no mundo em
que está inserido buscando o bem do próximo (amor de benevolência) não é algo
que brota espontaneamente no agir concreto das pessoas. Bem ao contrário, é
comum encontrar homens e mulheres atuando nos mais diversos ambientes buscando
exclusivamente os interesses pessoais, ainda que em detrimento daqueles com
quem convivem. Diante disso, como sustentar ser o amor um anseio natural no ser
humano?
Convém não confundirmos, porém, natureza com
espontaneidade. Muito se prega como modelo de conduta a naturalidade, como tal
entendido que se deva agir em cada situação da maneira que nos é mais
aprazível, vale dizer, deve se dar rédea solta ao que nos ditam os instintos a
cada momento. Se se quer comer um doce, come-se, com as cautelas para não
engordar. Se se sente uma atração por uma colega ou um colega de trabalho, não
há porque reprimir esse impulso...
Acontece que é um fato também inegável que esse agir
com “naturalidade”, dando vazão aos instintos, “enche” as pessoas de um grande
vazio existencial. E o motivo disso está em que o bem para o qual está
orientada a natureza humana nem sempre é aquele que se nos desenha como mais
apetecível. Não há uma necessária e inexorável contradição entre o amor de
benevolência, que há de nortear as nossas vidas, e os instintos. Mas é aquele e
não esses o elemento seguro a nos guiar em busca da realização.
Assim delineada a vocação universal do ser humano
para o amor, convém que agora nos deparemos com uma modalidade bem peculiar dessa
mesma realidade que se estabelece na união conjugal.
Os filhos e o
amor conjugal
Embora o amor conjugal esteja inserido na mesma
realidade do amor, apresenta matizes que o distinguem das demais manifestações.
Trata-se de uma realidade fortemente marcada pelo sentimento. Há uma natural
atração entre o homem e a mulher que os levam a buscar a convivência e a unir
suas vidas. Mas ainda que muito intenso, a realidade do amor conjugal não se
limita a esse sentimento. Ele é, no mais das vezes, um importante atrativo para
uma decisão a ser tomada: a de cada um se doar ao outro, num compromisso formal
que, a partir do momento em que contraído, unirá duas vidas de maneira intensa
e perene.
O casamento, diz o Código Civil brasileiro, instaura
a comunhão plena de vida. Ora, é evidente que essa comunhão plena de vida não
pode ser o mero resultado de uma atração sensível, a ser desfeita ao sabor dos
vaivéns dos sentimentos. Uma vez contraído o pacto matrimonial, que se traduz
essencialmente na doação que cada um faz de si próprio ao outro, estabelece-se
um vínculo que é também sentimento, mas que exige agora um comprometimento da
vontade no sentido de querer querer a pessoa do outro que se nos doou
incondicionalmente e a quem nos doamos também numa entrega que abarca toda a
dimensão conjugal.
Essa entrega que tão acentuadamente caracteriza a
união conjugal não se limita à sexualidade, mas é ela parte integrante e
importantíssima. A comunhão plena de vida que se instaura no casamento implica
a ajuda mútua, a convivência no lar conjugal, mas também as relações sexuais. E
essas são também expressão desse amor de benevolência. Aliás, é um exemplo
marcante de que não há contradição necessária entre o prazer e a busca do
verdadeiro bem. Com efeito, ao mesmo tempo que intensamente prazerosa, nela se
materializa muito especialmente a entrega de cada um pelo bem do outro.
Portanto, o casamento se orienta naturalmente para a
geração e educação dos filhos. Como dizíamos, o ser humano busca em sua origem
um ato de amor, assim como somente encontra a sua realização orientando a sua
vida para o amor. Logo, o lar constituído por um homem e por uma mulher que se
amam é como que o habitat natural
para que o ser humano nasça e se desenvolva. Nenhum outro ambiente está tão bem
disposto para acolher uma vida como aquele formado por um casal que se uniu por
amor e está disposto a se amar cada vez mais.
O casamento fechado à procriação é uma contradição em
termos. Quando o homem e a mulher se doam um ao outro em matrimônio por amor,
nessa doação recíproca já se constrói naturalmente o ambiente mais adequado
para que uma nova vida venha ao mundo.
Ora, excluir a geração e a educação dos filhos da
união conjugal seria o mesmo que privar a realização desse mesmo amor em seus
dois aspectos. Ou seja, não será ele fonte de vida que possa depois encontrar
naquele ato de amor o fundamento de sua existência, nem expressão de um amor
verdadeiro que, por ser entrega incondicional, se abre à vida.
A pretensão de se unir em matrimônio sem se abrir à
procriação seria o mesmo que uma fonte que busca água límpida nas profundezas da
terra mas que se nega a jorrá-la na superfície. Não seria uma fonte verdadeira
porque ao movimento de captar há de se seguir inexoravelmente o de transbordar.
Com as imperfeições que toda analogia traz em si, pode-se dizer que unir-se em
matrimônio por amor, mas negar a essa união a sua aptidão natural para ser
fonte de vida, que é amor, é uma incoerência terrível, que faz secar a própria
fonte do amor. Com isso, homem e mulher passam a buscar no outro um mero
instrumento para satisfação de interesses pessoais. Mas isso não é amor, mas
uma relação predatória que perdura enquanto subsistir no outro os atributos que
se pretende explorar para haurir satisfações egoístas.
“O meu egoísmo
é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é querer ajudar”, canta poeticamente
Raul Seixas. Um dia, num olhar, num gesto, numa palavra, encontramos a pessoa
que dentre inúmeras outras fez pulsar o coração, fraquejar as pernas e cintilar
os olhos. Um pouco depois, adentramos em sua intimidade e então podemos
exclamar: “é ela” (ou “é ele”). E eis que, agora não apenas com o coração, mas
também com a razão lhe dizemos “SIM”. Então não mais apenas a queremos (ou o
queremos), mas queremos querer essa pessoa cada vez mais. Mas esse querer e
esse amar são tão intensos que não cabem apenas no outro. Como tudo o que é
abundante, transborda. Os filhos, são, pois, esse transbordamento de amor que
não poderia ficar fechado em dois corações apenas. E assim segue o amor em sua
dinâmica magnífica de ser fonte da vida, que curiosamente se orienta para o
mesmo amor.
Esse amor que se vislumbra na origem e que se orienta
como fim da existência humana não se resume a um sentimento. Ainda que tenha
frequentemente manifestações sensíveis, desenha-se também como um ato da
vontade e se manifesta em querer o bem daqueles a quem se ama. Em suma, o ser
humano tem um anseio irreprimível de se ver a si próprio como produto de um ato
de amor e de orientar a sua vida para ser no mundo em que está inserido uma
manifestação desse amor para com todos aqueles com quem convive.