quarta-feira, 30 de março de 2011

Matrimônio e filiação

Introdução
É significativo hoje em dia o número de pessoas que optam por se casar sem a intenção de ter filhos. Diante desse cenário, e analisando a questão sob uma perspectiva antropológica, é oportuno indagar se os filhos são livre decisão do casal, que então poderiam optar por tê-los ou não sem que isso interfira na relação conjugal ou se, ao contrário, o casamento está naturalmente orientado à geração e educação da prole.
Indagações dessa envergadura não podem ser adequadamente enfrentadas sem que voltemos o olhar para a natureza humana. O que são a mulher e o homem em sua essência?
É inegável que uma pergunta dessa magnitude não permite respostas simplistas. Mas se nos lançássemos sem maiores rodeios ao núcleo da questão, o que mais acentuadamente caracteriza o ser humano é o amor. E isso ao menos em dois aspectos, quais sejam, de ser ele o resultado de um ato de amor e, ao mesmo tempo, o anseio profundo de orientar a sua vida para o amor.
O amor nas origens do ser humano
Nenhum ser humano consegue manter uma existência minimamente equilibrada sem sentir-se e ser de fato amado. Essa realidade se mostra presente, ainda que com diferentes matizes, nas mais diversas fases da nossa vida. O homem maduro precisa sentir-se amado por sua esposa, por seus filhos, estimado e respeitado em seu ambiente de trabalho e no seu círculo de amizades. O jovem, igualmente, sente a necessidade vital de ser amado por seus pais, reconhecido e valorizado entre os seus amigos. Quando falta de maneira significativa essa aceitação (no fundo o que se almeja é o amor) provavelmente estaremos diante de uma pessoa insatisfeita e infeliz.
Esse anseio por ser e se sentir de verdade amado se projeta em cada ser humano muito especialmente para as suas origens. Uma prova disso está no empenho que fazem as pessoas que não foram reconhecidas pelo pai em encontrá-lo, conhecê-lo e, se possível, estabelecer com ele uma relação minimamente filial.
Mas mais que isso, todo filho deseja que pai e mãe se amem. Certa vez um garoto de sete anos, que vivia numa família bem constituída, presenciou uma pequena discussão entre os pais. Em seguida, com os olhos cheios de indignação disse ele ao pai: “prefiro mil vezes que você brigue comigo do que trate a minha mãe dessa forma”.
Quando sustentamos que o ser humano anseia vislumbrar em sua origem um ato de amor, talvez uma grande objeção que se levante é que muitos homens e mulheres durante toda a história da humanidade, mas sobretudo em nosso tempo, não nasceram em um lar formado por genitores que se amam. É verdade. Mas é igualmente verdade que se está em débito com esses milhares de seres humanos a quem não se é respeitado esse direito fundamental de nascer no seio de uma família.
Aliás, tanto mais humana será uma sociedade quando maior for a sua capacidade de se estruturar para suprir a ausência desse amor que deveria envolver a vinda de um novo ser ao mundo. Fala-se em adoção, família extensa, entidades de abrigo, como formas de suprir a existência de um lar naturalmente formado pelo pai, pela mãe e sua prole. E de fato pode-se criar uma rede de acolhimento capaz de cercar de imensos cuidados a criança e o adolescente. Mas tudo isso será sempre paliativos se comparado com o que lhe proporcionaria um pai e uma mãe que se amam e nesse amor se doam entre si e aos filhos.
O amor com fim da existência humana
Se a ausência de amor na origem do ser humano pode ser suprida, ainda que de modo imperfeito, por outras manifestações de amor que se desenvolvem no decorrer de sua vida, nada pode suprir o seu anseio por ser no mundo manifestação desse mesmo amor pelos outros. Ignorar esse dado é lançar fora toda possibilidade de realização enquanto homem ou mulher.
Diz-se que o homem é um ser social. Com essa expressão, contudo, muitas vezes pensamos que dependemos dos outros e por esse motivo vivemos em sociedade. É verdade, há uma mútua dependência entre os seres de uma comunidade. No entanto, essa dependência é, sobretudo, de superabundância. Ou seja, mais que extrair dos outros a satisfação de nossos interesses, precisamos de nos doar desinteressadamente.
Nesse ponto, talvez nos deparemos com outro problema de razoável fundamento antropológico. É que esse anseio por atuar no mundo em que está inserido buscando o bem do próximo (amor de benevolência) não é algo que brota espontaneamente no agir concreto das pessoas. Bem ao contrário, é comum encontrar homens e mulheres atuando nos mais diversos ambientes buscando exclusivamente os interesses pessoais, ainda que em detrimento daqueles com quem convivem. Diante disso, como sustentar ser o amor um anseio natural no ser humano?
Convém não confundirmos, porém, natureza com espontaneidade. Muito se prega como modelo de conduta a naturalidade, como tal entendido que se deva agir em cada situação da maneira que nos é mais aprazível, vale dizer, deve se dar rédea solta ao que nos ditam os instintos a cada momento. Se se quer comer um doce, come-se, com as cautelas para não engordar. Se se sente uma atração por uma colega ou um colega de trabalho, não há porque reprimir esse impulso...
Acontece que é um fato também inegável que esse agir com “naturalidade”, dando vazão aos instintos, “enche” as pessoas de um grande vazio existencial. E o motivo disso está em que o bem para o qual está orientada a natureza humana nem sempre é aquele que se nos desenha como mais apetecível. Não há uma necessária e inexorável contradição entre o amor de benevolência, que há de nortear as nossas vidas, e os instintos. Mas é aquele e não esses o elemento seguro a nos guiar em busca da realização.
Assim delineada a vocação universal do ser humano para o amor, convém que agora nos deparemos com uma modalidade bem peculiar dessa mesma realidade que se estabelece na união conjugal.
Os filhos e o amor conjugal
Embora o amor conjugal esteja inserido na mesma realidade do amor, apresenta matizes que o distinguem das demais manifestações. Trata-se de uma realidade fortemente marcada pelo sentimento. Há uma natural atração entre o homem e a mulher que os levam a buscar a convivência e a unir suas vidas. Mas ainda que muito intenso, a realidade do amor conjugal não se limita a esse sentimento. Ele é, no mais das vezes, um importante atrativo para uma decisão a ser tomada: a de cada um se doar ao outro, num compromisso formal que, a partir do momento em que contraído, unirá duas vidas de maneira intensa e perene.
O casamento, diz o Código Civil brasileiro, instaura a comunhão plena de vida. Ora, é evidente que essa comunhão plena de vida não pode ser o mero resultado de uma atração sensível, a ser desfeita ao sabor dos vaivéns dos sentimentos. Uma vez contraído o pacto matrimonial, que se traduz essencialmente na doação que cada um faz de si próprio ao outro, estabelece-se um vínculo que é também sentimento, mas que exige agora um comprometimento da vontade no sentido de querer querer a pessoa do outro que se nos doou incondicionalmente e a quem nos doamos também numa entrega que abarca toda a dimensão conjugal.
Essa entrega que tão acentuadamente caracteriza a união conjugal não se limita à sexualidade, mas é ela parte integrante e importantíssima. A comunhão plena de vida que se instaura no casamento implica a ajuda mútua, a convivência no lar conjugal, mas também as relações sexuais. E essas são também expressão desse amor de benevolência. Aliás, é um exemplo marcante de que não há contradição necessária entre o prazer e a busca do verdadeiro bem. Com efeito, ao mesmo tempo que intensamente prazerosa, nela se materializa muito especialmente a entrega de cada um pelo bem do outro.
Portanto, o casamento se orienta naturalmente para a geração e educação dos filhos. Como dizíamos, o ser humano busca em sua origem um ato de amor, assim como somente encontra a sua realização orientando a sua vida para o amor. Logo, o lar constituído por um homem e por uma mulher que se amam é como que o habitat natural para que o ser humano nasça e se desenvolva. Nenhum outro ambiente está tão bem disposto para acolher uma vida como aquele formado por um casal que se uniu por amor e está disposto a se amar cada vez mais.
O casamento fechado à procriação é uma contradição em termos. Quando o homem e a mulher se doam um ao outro em matrimônio por amor, nessa doação recíproca já se constrói naturalmente o ambiente mais adequado para que uma nova vida venha ao mundo.
Ora, excluir a geração e a educação dos filhos da união conjugal seria o mesmo que privar a realização desse mesmo amor em seus dois aspectos. Ou seja, não será ele fonte de vida que possa depois encontrar naquele ato de amor o fundamento de sua existência, nem expressão de um amor verdadeiro que, por ser entrega incondicional, se abre à vida.
A pretensão de se unir em matrimônio sem se abrir à procriação seria o mesmo que uma fonte que busca água límpida nas profundezas da terra mas que se nega a jorrá-la na superfície. Não seria uma fonte verdadeira porque ao movimento de captar há de se seguir inexoravelmente o de transbordar. Com as imperfeições que toda analogia traz em si, pode-se dizer que unir-se em matrimônio por amor, mas negar a essa união a sua aptidão natural para ser fonte de vida, que é amor, é uma incoerência terrível, que faz secar a própria fonte do amor. Com isso, homem e mulher passam a buscar no outro um mero instrumento para satisfação de interesses pessoais. Mas isso não é amor, mas uma relação predatória que perdura enquanto subsistir no outro os atributos que se pretende explorar para haurir satisfações egoístas.
 “O meu egoísmo é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é querer ajudar”, canta poeticamente Raul Seixas. Um dia, num olhar, num gesto, numa palavra, encontramos a pessoa que dentre inúmeras outras fez pulsar o coração, fraquejar as pernas e cintilar os olhos. Um pouco depois, adentramos em sua intimidade e então podemos exclamar: “é ela” (ou “é ele”). E eis que, agora não apenas com o coração, mas também com a razão lhe dizemos “SIM”. Então não mais apenas a queremos (ou o queremos), mas queremos querer essa pessoa cada vez mais. Mas esse querer e esse amar são tão intensos que não cabem apenas no outro. Como tudo o que é abundante, transborda. Os filhos, são, pois, esse transbordamento de amor que não poderia ficar fechado em dois corações apenas. E assim segue o amor em sua dinâmica magnífica de ser fonte da vida, que curiosamente se orienta para o mesmo amor. 

Esse amor que se vislumbra na origem e que se orienta como fim da existência humana não se resume a um sentimento. Ainda que tenha frequentemente manifestações sensíveis, desenha-se também como um ato da vontade e se manifesta em querer o bem daqueles a quem se ama. Em suma, o ser humano tem um anseio irreprimível de se ver a si próprio como produto de um ato de amor e de orientar a sua vida para ser no mundo em que está inserido uma manifestação desse amor para com todos aqueles com quem convive.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Alienação parental

Foi aprovada no ano passado a Lei Federal nº 12.318, de 26 de agosto de 2010, que visa coibir a chamada alienação parental. Para tratar desse assunto, realizou-se na última sexta-feira um seminário na Cidade Judiciária de Campinas.
Em seu artigo 2º a Lei tenta esboçar um conceito: Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Na sequência, a norma estabelece vários dispositivos para punir essa prática, o que pode ser desde uma simples advertência, a imposição de uma multa e até mesmo a suspensão do poder familiar.
Não pretendemos, nesse breve espaço, desenvolver uma espécie de fórmula mágica para que pai e mãe parem de cometer essa terrível violência. De fato, uma das piores atrocidades que o pai ou a mãe podem cometer contra os seus filhos é falarem mal um do outro diante deles, estando ou não separados.
Há muitos especialistas tratando do assunto e também é farto o material que já se produziu. Com o devido respeito, porém, muito pouco se tem feito para atacar a raiz do problema.
Qual é o cenário típico em que ocorre a chamada alienação parental? Não há uma regra geral, porém, em grande parte dos casos a situação ocorre com o pai ou a mãe que mantém muita mágoa do ex-cônjuge ou ex-companheiro(a) e que se empenha em colocar o filho contra ele ou ela.
Com isso, a tônica da Lei e dos que trabalham no assunto está em que pai e mãe aprendam a se respeitar e se empenhem, se não em aproximar o outro dos filhos, ao menos que não dificultem essa aproximação. Mas por que não se busca, antes disso, que não haja ex-cônjuges, vale dizer, que pai e mãe se empenhem com seriedade a manter a relação conjugal pelo bem deles e dos filhos?
Dá-se a impressão de que algumas modernas concepções sobre a família e o casamento montam armadilhas para as pessoas e, quando elas caem nelas, empenham-se ou simulam empenhar-se em desenroscá-las. Explico-me.
É corrente o entendimento de que o que mantém o matrimônio é o afeto, de modo que, quando esse acaba, acaba também o casamento. Com isso, estimula-se o divórcio. Nessa linha está a alteração da Constituição Federal que possibilita se casar e se divorciar no mesmo dia. O resultado disso – é evidente – é o aumento do número de divórcios, com todas as consequências nefastas: filhos desorientados, lares desfeitos, brigas, rancores, alienação parental... Na busca de soluções, porém, debate-se a guarda compartilhada, a alienação parental etc., mas não entra na pauta exatamente a raiz do problema: o divórcio.
Não estamos a sustentar que questões atuais como a guarda compartilhada e a alienação parental não devam ser debatidas na busca da melhor solução possível para os filhos de pais divorciados. Temos de enfrentar com coragem os problemas decorrentes da desagregação dos vínculos familiares. Mas muito mais que isso, temos de lutar para que esses vínculos sejam cada vez mais fortes. Que pai e mãe aprendam a se querer cada vez mais e que os filhos se reconheçam como frutos desse amor.

No início aborreci o leitor transcrevendo o conceito legal de alienação parental. Permita-me agora terminar com a descrição dos deveres do matrimônio, previstos no artigo 1.566 do Código Civil: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos. Quanto mais esmeradamente cuidarmos disso, por amor, nos pequenos detalhes da vida conjugal, tanto menos teremos de nos ocupar daquelas patologias que tanto malefício têm causado às nossas crianças e adolescentes.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Por um projeto familiar de sucesso

Há algum tempo ouvi de um amigo um comentário jocoso sobre a fórmula canônica do matrimônio, que consagra a união conjugal para toda a vida. Ele estava certo de que a indissolubilidade do vínculo matrimonial não passa de uma regra imposta pela Igreja Católica e que isso não faz mais nenhum sentido nos dias atuais.
É hoje muito difundida a convicção de que manter o casamento e a família por toda a vida é fardo pesadíssimo, quase que impossível de ser suportado. De fato, não é fácil construir uma vida conjugal feliz. Basta pouco tempo de convivência para perceber as inúmeras dificuldades que nos traz a vida a dois. No entanto, essa ideia de que é peso insuportável talvez esteja fundada na perspectiva com que se encara o compromisso e nas expectativas que cada um traz para o casamento.
Voltemos para a fórmula do casamento canônico com que brincava o meu amigo: “Eu, ..., te recebo, ..., como minha esposa e te prometo...”. Muitos põem o acento nessa promessa. Assim, poderão sustentar: “Como alguém com vinte ou trinta anos de idade pode prometer amor e fidelidade eternos num momento de suas vidas que não têm a menor noção do que será a vida conjugal no futuro?”.
No entanto, esse questionamento tem como fundamento uma concepção distorcida. No pacto matrimonial cada cônjuge se doa um ao outro, vale dizer, entrega a sua própria pessoa, tanto que daí surgirá uma nova identidade, qual seja, o estado de casado. Essa realidade se faz evidente na mesma fórmula com a expressão “eu te recebo”. Ora, somente se recebe algo que nos é dado. O compromisso que se assume é importante. Mas antes de se prometer amor, fidelidade e respeito, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, há que se receber a pessoa do outro que se doa. E exatamente porque se recebe esse imenso dom é que se compromete a cuidar dele enquanto existir.
Outro provável motivo para se enxergar a indissolubilidade do casamento como um fardo pesado está em nossas expectativas. No início do relacionamento, é comum que o casal se sinta apaixonado. Trata-se de um sentimento inexplicável e que refoge ao controle. Mas é ao mesmo tempo uma sensação prazerosa: “quem sabe, sabe, conhece bem, como é gostoso gostar de alguém...”, canta a famosa marchinha de carnaval. Acontece que esse pulsar mais forte do coração e sentir as pernas fracas ao divisar, dentre inúmeras outras pessoas, aquela por quem se está apaixonado é, no contexto de uma vida, uma sensação que dura mais ou menos o que dura o sabor de uma torta de limão.
Além disso, ainda que seja saudável o enamoramento, ele pode conter uma não pequena dose de egoísmo. Com efeito, busca-se a pessoa do outro movido principalmente pelo prazer que o seu convívio proporciona. Assim, quando essa convivência não for mais prazerosa, diz-se que acabou o amor e então o melhor é partir para outro relacionamento.
Acontece que esse enamoramento é apenas uma fase inicial que há de culminar com uma doação. Não quer isso dizer que com passar dos anos o relacionamento há de se tornar insípido e pesado. Ao contrário, aquele sentimento pode ser nutrido e intensificado, tornando-se mais maduro e inclusive prazeroso. Mas não é exclusivamente ele que sustenta a união dos dois. Essa se perpetua na entrega recíproca que se traduz não apenas no querer o outro, mas em querer querê-lo(a) cada vez mais.

A torta de limão acaba e não fica nada. Quando muito um sabor amargo na boca. Aquele que doa algo duradouro conserva na alma a alegria estampada na face de quem recebeu o presente. E se esse presente somos nós próprios, então nos encontramos no outro, rejuvenescidos e fortalecidos a amar cada vez mais. E amamos com o nosso coração, mas não apenas com ele. Além do nosso afeto, nos doamos com a vontade e com a inteligência, numa entrega que tanto mais intensa tanto mais feliz será.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Serviços domésticos

Acendeu-se recentemente um debate sobre a utilização do chamado elevador social nos condomínios de apartamentos por pessoas que prestam serviços domésticos. Há quem sustente que a medida é discriminatória e já se fala em regulamentação da matéria. Penso que não há mesmo como sustentar essa diferença de tratamento. A empregada doméstica, o jardineiro, o porteiro, o zelador e todos os demais prestadores de serviços são pessoas humanas e, portanto, dotados de uma imensa dignidade, com proteção constitucional. Por consequência, não há fundamento para que sejam instadas a tomar somente o elevador de serviços, entrar pela porta dos fundos ou sofrer outras injustas limitações dessa natureza.
Talvez seja necessária a edição de leis que coíbam essa discriminação. Também pode ser o caso de se exigir uma postura mais atuante dos sindicatos em defesa da categoria. Porém, o reconhecimento da verdadeira dignidade dessas pessoas exige mudanças muito mais profundas, que tocam a nossa maneira de pensar e de agir.
Há quem sustente que a empregada ou o empregado doméstico é uma profissão que num futuro não muito longínquo deixará de existir ou será muito reduzido o número desses trabalhadores. Com o aquecimento da economia e o incremento do consumo e da produção, essa força de trabalho seria absorvida pela indústria e demais segmentos produtivos. Aliás, isso já é o que acontece em países desenvolvidos, onde sequer a classe média tem condições de ter funcionários fixos no lar.
Mas deixando de lado as especulações sobre como será a realidade do mercado de trabalho no futuro, no momento há um imenso número de pessoas que se dedicam profissionalmente aos trabalhos domésticos. Nesse contexto, como deve ser essa relação entre os membros da família e esses trabalhadores numa sociedade que pretende ser cada vez mais humana?
Acredito que um bom critério é tratar a empregada do lar como uma pessoa a mais da família. Isso traz inúmeros benefícios: desempenha-se o  serviço com maior satisfação e, por consequência, o resultado é melhor; os filhos são educados desde muito pequenos a enxergar em cada ser humano uma igual dignidade, independentemente da condição social ou do grau de instrução; o ambiente familiar se mostra mais natural e sereno quando todos os que nele habitam são “de casa”.
Outro dia fiquei sabendo de um homem que compareceu a uma audiência e, indagado pelo juiz sobre a profissão, respondeu com o rosto corado e cheio de vergonha que era catador de lixo reciclável. O magistrado, notando o seu constrangimento lhe disse: “o senhor não precisa ter vergonha da sua profissão. Todos os trabalhos honestos são igualmente dignos. Aliás, qual trabalho é mais digno, o seu ou o meu?”. O cidadão tentou esboçar uma resposta, mas antes que o fizesse, concluiu o juiz: “O trabalho mais digno é aquele que é feito com mais amor, seja ele qual for”.
Essa visão sobre o trabalho não pode ser utilizada como paliativo para não se cumprir todos os direitos sociais. Ou ainda que se tratem os empregados domésticos com respeito apenas para evitar futuras reclamações trabalhistas. Bem ao contrário, o reconhecimento da dignidade que merece esse trabalhador pressupõe que se cumpram todos os direitos trabalhistas e com pontualidade.

A humanização das relações de trabalho, especialmente aquele realizado no lar, consiste num exceder-se na justiça. Trata-se de pagar salários justos, recolher as contribuições devidas e assegurar as férias e demais direitos sociais. Mas além de tudo isso, devemos saber enxergar nessas pessoas seres humanos que sofrem, que têm filhos doentes e dificuldades com o marido e que, portanto, saibam encontrar em nós e nas pessoas de nossa casa um amparo forte e sereno nessa árdua mas ao mesmo tempo bela passagem pela vida.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Dia da Mulher

Amanhã, dia 8 de março, comemoramos o Dia Internacional da Mulher. Em recente pronunciamento, a presidenta (como ela quer ser chamada) Dilma Rousseff anunciou que as políticas públicas, nisso incluídos os programas Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida, devem priorizar a mulher, pois é grande o número de famílias chefiadas exclusivamente pela mãe.
Diante desse cenário, em que são cada vez mais frequentes as famílias formadas exclusivamente pela mãe e seus filhos, sem a presença do pai e esposo a compartilhar essa difícil missão, penso que é mesmo imprescindível que o Estado tenha iniciativas de apoio à mulher brasileira. Mas será que é apenas com isso que a mulher espera ser homenageada?
Há poucos dias assisti a um desses documentários na TV que mostram a vida na selva. A tomada da câmera inicia com um leão caminhando bem determinado a um destino fixo. Ele passa imperturbável por várias zebras que fogem apavoradas. “Ele não estava com fome”, comenta o apresentador. Após um longo percurso, chega a um local onde havia três leoas que, juntas, cuidavam de seus filhotes. Elas caçavam em grupo e, dessa forma, alimentavam-se e nutriam as crias. Mas a presença do macho ali passou a representar uma ameaça, explica o apresentador. É que ele poderia matar os filhotes para que a mãe entrasse no cio.
Confesso que essa afirmação me causou uma certa perplexidade: matar os filhotes apenas para obter uma satisfação sexual! Mas, se pensarmos bem, isso não deveria nos assustar. A natureza tem suas leis próprias que, no fundo, realçam cada vez mais a sua beleza. A leoa estrangulando a zebra, a hiena na espreita para devorar o filhote da leoa e o leão que aguarda pacientemente uma oportunidade de acasalamento agem por puro instinto de sobrevivência e de preservação da espécie. O que nos deveria causar profundo espanto é quando nós, seres humanos, dotados de inteligência e vontade livres, agimos puramente pelos mesmos instintos!
Às vésperas do carnaval a TV exibe, sem qualquer escrúpulo e a qualquer hora do dia, uma mulher sambando completamente nua. Esse fato demonstra que, sob a triste resignação das feministas, vivemos o mais cruel dos machismos. Aquele em que a mulher é apresentada como mero objeto de prazer. Pior, exibem-na fingindo gostar de desempenhar esse papel!
Mais do que simplesmente desejada, o que a mulher anseia, no fundo, é ser amada. Que se demonstre por ela um amor afetuoso. Mas, ao mesmo tempo, que esse amor não se resuma a um mero sentimento fugaz, ao contrário, que venha também impregnado de uma forte e decidida vontade de lhe fazer o bem e de querê-la cada vez mais. Ela quer alguém que esteja disposto a compartilhar igualmente e por toda a vida as desventuras e as alegrias de formar uma família.
O relacionamento conjugal é substancialmente diferente do mero acasalamento que vemos nas espécies animais. Ainda que exteriormente o ato sexual do ser humano tenha algumas semelhanças com o de alguns mamíferos, na essência é muito diferente. É, inegavelmente, um ato prazeroso e também contribui para a preservação da espécie. Porém, muito além dessas realidades materiais, é um ato de amor, de doação, é vida e fonte de vida.

É bom que o dia internacional da mulher seja comemorado com o anúncio de políticas públicas que as amparem na árdua missão de conduzir sozinhas o sustento e a educação dos filhos. Mas seria muito melhor que nós, homens, tomássemos consciência de que elas querem ser amadas e amparadas, e que assumamos igualmente a nossa responsabilidade no lar e na educação dos filhos. Em suma, que não as abandonemos à própria sorte, mas que nos mantenhamos fiéis e valentes, ao seu lado, até que a morte nos separe.