quinta-feira, 29 de setembro de 2005

O trabalho do presidiário

Lemos no livro do Gênesis que Deus formou Adão com o barro da terra e criou para ele este mundo tão belo para que o trabalhasse e guardasse (Gen II, 15). Não pretendo tecer aqui considerações profundas acerca da Sagrada Escritura, e nem teria competência para fazê-lo, mas da clareza desse relato podemos concluir que o trabalho é inerente à natureza humana.
Aliás, para nós que não somos teólogos nem nada, é até mais fácil argumentar com a sabedoria e simplicidade do Gonzaguinha, de quem lembramos com a voz do Fagner:
Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é a sua vida
E a vida é trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz
Não dá pra ser feliz
Mas e o preso, caro Gonzaguinha? Dele podem castrar-lhe o sonho? O sonho que é a sua vida, vida que é um trabalho dedicado ao semelhante?
Lembro-me agora de um grande amigo e colega que relata a sua experiência como juiz corregedor de uma cadeia pública. Logo que assumiu o cargo, trouxeram-lhe o problema das constantes fugas de presos. Todo mês estouravam uma cela e fugiam, não raro colocando, com isso, em risco a vida de carcereiros, população e do próprio detento. Qual foi a solução que se buscou? Cumprir a lei que dá ao preso o direito de trabalhar.
Criou-se um mecanismo mediante o qual cada preso teria oportunidade de trabalhar. A cada novo detento, procurava-se conhecer a sua situação peculiar: por que foi preso? Onde está a sua família? Quais são os seus problemas? Em seguida, era exposto ao detento com toda a lealdade que, dependendo de seu comportamento e esforço por melhora, progressivamente, começaria a sair da cela durante o dia para trabalhar. Iniciava-se com trabalhos na própria cadeia, com maior vigilância e, tornando-se merecedor da confiança, chegava até a trabalhar em repartições públicas.
O atendimento era personalizado. Às vezes algum preso passava a dar mostras de descumprimento das regras. Nesse caso, por meio de um trabalho interdisciplinar, que contava com psicóloga, delegado de polícia e agentes públicos, buscava-se averiguar a raiz do problema. Não raras vezes descobria-se que o motivo de uma conduta indisciplinada é que os familiares estariam passando fome, quando então a mesma equipe se empenhava em ajudar a família. O reflexo era imediato na melhora do comportamento do detento.
E o interessante é que cada um trabalhava em suas habilidades, pois ali havia pintores, eletricistas, pedreiros, que passavam a desenvolver esses trabalhos em benefício da comunidade local.
Poder-se-ia pensar que, com isso, as fugas se teriam tornado “uma festa”. Ledo engano! Reduziram-se vertiginosamente.
É que o trabalho é inerente à natureza humana, de maneira que, quando se busca de verdade a recuperação, há que se encontrar meios que restabeleçam a dignidade do detento, e não acabando por aniquilá-la em uma ociosidade nefasta, que segrega apenas para abafar provisoriamente o problema, sem se importar que, com isso, apenas se agrava ele.
Mas para lançar-se em empreendimentos como esse, são necessárias pessoas magnânimas, com almas grandes, verdadeiros guerreiros que não se contentam em passar por essa vida, mais que isso, querem deixar rastros que tornem mais suave o caminho dos que virão depois.
Sem hipocrisias, caro leitor, são desses guerreiros que precisamos, Afinal:
Guerreiros são pessoas
São fortes, são frágeis
Guerreiros são meninos
No fundo do peito
Precisam de um descanso
Precisam de um remanso

Precisam de um sonho.

quarta-feira, 21 de setembro de 2005

Todo mundo é corrupto. Será?

Em meio a tantos noticiários de corrupção nos meios políticos, um dia desses vi uma frase estampada em um carro, diante da qual não escondo uma grande preocupação. Dizia ela: “meu voto é nulo”.
O preocupante disso é que, com ou sem votos nulos, continuaremos sendo governados por políticos e, se descuidarmos de escolher bem, corremos o risco de as coisas piorarem. Mas há ainda algo de mais grave nesse clima de estarrecimento que nos invadiu nesses últimos tempos. Refiro-me ao perigo da generalização. Com efeito, diante de tantas denúncias, corremos o risco de acreditar sinceramente que não adianta fazermos nada. Afinal “todo mundo é corrupto”.
Porém, se pensarmos um pouco melhor, a quem interessa essa frase? Não seria ela um prato cheio para os próprios corruptos? Isso porque, se todos o são, estariam eles justificados, na medida em que fariam apenas o que “todo mundo faz”.
Confesso que tenho uma certa desconfiança daquelas pessoas em cujas conversas são constantes essas alusões: “todo mundo é desonesto”. Há uns anos  tive um vizinho, cujas conversas chegavam a ser pedantes, de tanto que repetia frases do tipo dessas. Um tempo após, ficamos sabendo que estava foragido e procurado pela polícia, dado o envolvimento que teve com crimes graves. Desde então, fiquei com essa desconfiança: será que essas pessoas não repetem tanto isso como forma de “massagear suas próprias consciências” para que não se acusem tanto elas de suas desonestidades?
Penso que diante da gravidade da situação política o que é mais importante é a serenidade. Se um doente padece de uma infecção grave e generalizada, há que se tratar da infecção e não matar o doente ou dá-lo por desenganado. O mesmo ocorre com as “doenças sociais”, como o é a corrupção. Se há políticos que cometeram ilícitos, há que se exigir com rigor a punição deles, mas isso não nos autoriza taxar todos de corruptos e, por conseqüência, botar a perder todo o sistema.
Aliás, a degradação moral que atinge certos ocupantes de cargos públicos, talvez seja reflexo de uma mesma crise ética que assola as bases da própria sociedade. Façamos um breve exame que nos ajuda a entender isso: quando um vendedor dá um troco a maior, devolve-se imediatamente o que se recebe a mais? Quando se encontra um dinheiro perdido, há um pesar por isso fazer falta a quem o perdeu, ou se alegra com isso porque “o achado não é roubado”? Como empregador, pagam-se salários justos? Como empregado, esforça-se por trabalhar bem, por dever de justiça? Como servidor público, ocupa-se de servir o público, razão de ser de seu emprego? Como pais, dá-se aos filhos a educação e atenção que lhes é devida?
É hora de sermos mais exigentes no cumprimento de nossas obrigações familiares, profissionais e sociais. E não deixa de ser desonestidade descuidar desses deveres, grandes ou pequenos. Isso porque honestidade é algo que não comporta medidas, ou se tem ela ou não.
E há pessoas, infelizmente, que não recebem “mensalão” não porque são honradas, mas porque não são deputados.

Portanto, há que se resgatar a justiça pelo local onde ela se encontra de verdade, que é no recôndito das consciências. Isso porque justiça é, acima de tudo, dar a cada um o que é seu. E fazê-lo é missão de todos, não apenas de políticos.

quarta-feira, 14 de setembro de 2005

O Bom Humor

Um dia desses nosso Presidente foi indagado por um repórter acerca do seu bom humor, ao que lhe respondeu: “É claro, depois do Brasil ter ganho por 4 a 0, ou melhor, 5 a 0, você quer o quê?”.
Coloquei-me então a pensar a causa do nosso bom ou mau humor, quando então que me lembrei do drama vivido por meu amigo Inácio.
Numa sexta-feira ensolarada, o Inácio acordou com aquele insuportável bom humor. Lembrou-se de que sairia em viagem à tarde, o que fez aumentar ainda mais sua euforia. Porém, no elevador, deu de cara com a síndica, com quem havia travado séria desavença na última reunião do condomínio. Na garagem, o vizinho o fez esperar por não mais que trinta minutos até descer as compras. Afobado, agora no trânsito, teve de ouvir um desaforo de uma senhora: “Tá com pressa, saísse antes.”
Parece que o humor do Inácio resistiu a isso tudo. Afinal de contas, era sexta-feira, e a viagem compensaria tudo. Ao chegar ao escritório, no entanto, o colega de trabalho estava tão carrancudo que, se medisse, daria uns quarenta centímetros entre a testa e o queixo enrijecido para baixo. “Tudo bem, é sexta-feira”. Mas, quando chegou a secretária inundando o ambiente com aquele perfume horroroso, aí ele não resistiu: “Droga, quem foi que deu à Síndica, àquela louca do trânsito e aos colegas de trabalho o direito de estragar meu dia, meu fim de semana e ..., droga! Meu bom humor...?
O Inácio resolveu comentar isso com um velho e bom amigo seu, a quem costuma confidenciar seus maiores problemas, sonhos e frustrações. Após ouvir-lhe atentamente, com aquele seu ar sereno e sábio, indagou-lhe o amigo: “Inácio, o que você está fazendo neste mundo?”. E, antes que o Inácio pudesse esboçar a resposta, laçou-lhe outra pergunta ainda mais desconcertante: “Qual é o sentido que os acontecimentos têm na sua vida?”
Na verdade, essas dúvidas já se lhe haviam apresentado anteriormente, mas Inácio sempre as abafava quando as coisas não corriam segundo seu agrado: “Logo chegará o final de semana” ou “está próxima aquela viagem”. Agora, entretanto, o amigo não lhe deu escapatória, colocou-o de frente com o problema.
“Sabe, Inácio”, continuou o amigo com toda a serenidade do mundo, “há essencialmente duas formas de passarmos nessa vida, servindo a nós próprios ou aos demais. Podemos trabalhar para ter dinheiro suficiente para a viagem, ou trabalhar pensando no bem das pessoas que dependem do nosso trabalho, ainda que com isso busquemos também o dinheiro que é essencial para sustentarmos a família. Podemos ansiar por chegar em casa ao final do dia para derramarmo-nos na poltrona, ou voltarmos preparados para um novo turno de trabalho, de serviço alegre e abnegado à esposa e aos filhos. Aliás, quer uma receita para ficar mal humorado?” – prosseguiu o conselheiro agora mudando o tom da voz, “fique quinze minutos em seu quarto pensando apenas em si: os meus problemas, as minhas coisas, os meus desejos, eu, eu, eu...”
E depois concluiu: “o bom humor verdadeiro brota de dentro para fora. Não depende da vitória do Brasil, das condições do tempo, da cara dos colegas de trabalho, da nota do filho na escola, de nada disso. Até porque, duas pessoas podem observar um mesmo copo com água até a metade, ao que o pessimista dirá que está quase vazio e o otimista, quase cheio. Em suma, o nosso bom humor, constante, sereno, sem euforia, mas duradouro, depende de uma convicção interior de esquecimento de si próprio e de serviço aos demais. As condições externas são fogo de palha, que não duram mais que um instante.”

O Inácio saiu de lá com aquela sensação de leveza de espírito de quem ouviu algo que lhe tocou a alma, e repetia: “fogo de palha”. Mas concluiu, com certo ar de teimosia...: “tá tudo certo, mas a classificação do Guarani não seria tão fogo de palha assim, duraria pelo menos 2006 inteiro!”

quarta-feira, 7 de setembro de 2005

A Cátedra de Franca

Semana passada, na Universidade, ministrei uma aula em que o assunto encaminhou para o direito à vida, em especial, ao problema de se definir a partir de quando e até em que momento há a tutela constitucional desse direito fundamental. Os alunos gostaram do tema, tanto que ao final se formou aquele grupo, ávidos por comentar e aprender mais.
No dia seguinte, sexta-feira, 2 de setembro de 2005, porém, o Correio Popular trouxe uma matéria que me obriga a confessar-lhe, caros alunos: não sei nada, ou sei ainda muito pouco sobre direito à vida e sobre garantias constitucionais. O título da matéria era: “Não aceito a eutanásia, afirma Rosemara Santos”.
Aprendamos com ela, caros alunos, nós, que, por cursarmos uma universidade, acreditamos muito saber, quando na verdade muito temos ainda de aprender, sobretudo com os pobres e humildes de coração. Trata-se de uma mãe que defende o direito à vida de seu filho, que padece de uma doença grave, pois o pai busca a morte do filho como forma de aliviar-lhe o sofrimento.
Rosemara nos ensina, referindo-se ao pai de seu filho: “Eu tenho a minha cabeça, ele tem a dele. Eu não aceito a eutanásia, é fora de tudo o que eu aprendi”. Já ouviram dizer, caros alunos, que a República Federativa do Brasil tem como fundamento o “pluralismo político” (artigo 1º, inciso V da Constituição Federal). Pois, então, aprendam com ela que, despedaçada de dor pelo filho, absolutamente convicta de que está na verdade, e o pai não, ainda assim respeita a opinião contrária, mas não deixa de manifestar com clareza a sua. Que maravilha de ensinamento! Já ouviram algo semelhante, caros alunos?
“Todas as noites eu agradeço a Deus por não ter faltado nada ao J. Às vezes estava acabando a fralda, o alimento (uma espécie de sopa nutritiva) e Deus enviava um anjo. São muitas as pessoas que ajudam”. Não há exemplo mais claro e concreto de que Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso I da Constituição Federal). Que fiéis cumpridores da Constituição Federal são os amigos da Rosemara!
“Meu filho poderia estar sem um braço, uma perna, mas de qualquer jeito eu o quero vivo. Eu quero passar cada dia com ele. Todo dia eu prometo para ele: J., a mamãe te promete que a gente vai ser muito feliz, esse pesadelo todo vai passar”. Quantos livros seriam necessários para esgotar a sabedoria dessa frase? Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida ... (Artigo 5º da Constituição Federal). A vida, meus queridos alunos, é um direito que não comporta adjetivos que anulem ou esvaziem o seu conteúdo verdadeiro. E a Rosemara nos ensina que se tutela o direito à vida e não a “vida extra-uterina”, não a “vida sem dor”, não a “vida viável”, não a “vida prazerosa”, não a “vida sem defeitos físicos”. Tutela-se simplesmente a vida.

Querem, pois, saber o verdadeiro alcance do artigo 5º da Constituição Federal, prezados alunos? Aprendam com ela. A vida que deve ser vivida e garantida desde a concepção e até quando por Ele querida.