Contemplando
o incidente ocorrido no Supremo Tribunal Federal por ocasião do início do
julgamento do “mensalão”, invadiu-me um profundo desejo de compartilhar com o
leitor o que se passa na cabeça de um juiz no ato de decidir. Não comentarei o
caso, nem tampouco falarei de processos que eu tenha de decidir pessoalmente.
Porém, para melhor ilustrar, falarei de um litígio já decidido, até porque a
lei (artigo 36, inciso III da Lei Orgânica da Magistratura) proíbe que me
manifeste somente sobre processo pendente de julgamento, não sobre os já
julgados.
Certo
dia, estava eu intrigado com um caso que teria de decidir. Tratava-se de um
seguro de vida, cujas parcelas do prêmio deveriam ser debitadas todo dia 4 de
cada mês em conta corrente. Naquele mês, o dia 4 caiu num sábado. No domingo,
dia 5, o segurado faleceu. Na segunda-feira, dia 6, a parcela do prêmio não foi
debitada na conta, por ausência de fundos. Com o argumento de que não foi paga
essa parcela, a seguradora negou o pagamento da indenização.
Li e
reli o caso. Estava inconformado, sentindo-me de mãos atadas, pois não me
parecia justo negar a indenização, afinal a morte ocorreu antes da data em que
poderia ser paga a parcela do prêmio. Porém, havia uma cláusula que previa que
se o vencimento ocorresse em um dia sem expediente bancário, prorrogava-se o
vencimento para o primeiro dia útil seguinte, ficando o pagamento da
indenização condicionado ao pagamento dessa parcela.
Meu filho, então com sete anos, que fazia lição ao
meu lado no escritório, notou a minha inquietação e quis saber o motivo.
Relatei o caso a ele, explicando com uma linguagem que pudesse entender. Poucos
minutos após, com a sabedoria e a simplicidade que apenas as crianças têm, ele
me perguntou: “Pai, qual é o valor que a mulher do homem que morreu quer
receber?”. “Cinqüenta mil reais”, respondi. “Quanto que teria que ter pago na
segunda-feira?”. “Cinqüenta e quatro reais”, respondi sem suspeitar o que ele
queria dizer. Em seguida, voltou a perguntar: “Pai, quanto é cinqüenta mil
menos cinqüenta e quatro?”.
“É isso!”, exclamei. Esse garoto matou a charada. Há
um instituto jurídico chamado compensação. Se no domingo o segurado já era
credor, não precisaria pagar a parcela na segunda-feira, pois os débitos se
compensam. Em seguida abandonei a simplicidade da criança e voltei a redigir a
sentença com citações de artigos de lei, jurisprudência etc.
Há poucos dias, atormentava-me com uma questão
jurídica e, por conseqüência, com a justiça da decisão que seria dada pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo. Não hesitei em ir conversar com o colega que
participaria da decisão do recurso. No debate e na troca de opiniões surgiram
idéias que permitiram construir uma decisão que, naquela situação, parece a
mais justa, sem fugir do que determina a lei.
O juiz não é um ser extraterrestre, insensível aos
reclamos do povo, totalmente alheio à opinião pública. De fato, a sua
preocupação maior deve estar em fazer justiça. Ele deve prestar contas, em
primeiro lugar, a sua própria consciência. Mas tem dúvidas e inseguranças. Por
vezes, sente o peso quase que insuportável das conseqüências da decisão que
terá de proferir.
Não há inconveniente em comentar com os colegas que
no Tribunal terão de decidir o mesmo caso, pois isso enriquece o conhecimento e
possibilita construir melhor a decisão, após ser mais detidamente refletida e
analisada.
Porém, todo juiz tem de se examinar a si próprio acerca
de qual é o fim realmente visado em cada decisão: fazer justiça, dando a cada
um o que lhe é devido? Ou preservar a própria imagem, dando asas à vaidade para
que todos o considerem uma pessoa culta, sábia etc?
Por fim, o juiz deve ser muito cauteloso ao escolher
com quem pode tratar de suas dúvidas e dificuldades. Todos conheceram a
história de Pilatos, que ao julgar foi pedir a opinião de uma multidão
encrespada: “querem que vos solte Barrabás?”. E os maus conselheiros
responderam que SIM. E o juiz, fraco e mal aconselhado, lava as mãos (como se
isso atenuasse sua responsabilidade) e deixa que executem a sentença mais
injusta que a humanidade já conheceu.