quarta-feira, 29 de março de 2006

Poder e abuso

O recente incidente de nosso Ministro da Fazenda coloca todos que ocupamos cargos públicos diante de uma situação que merece repetidas considerações durante a nossa vida: por que escolhi minha profissão?
E a resposta que damos a isso tem muitas implicações, que vão desde a realização profissional de cada um até o atendimento ou violação dos direitos das pessoas a quem os serviços públicos são prestados.
Será que se escolhe e se aceita ocupar cargos públicos porque, uma vez empossados, se estenderão tapetes vermelhos para sobre eles pisarmos? Certa vez, ouvi de uma colega que queria convencer-me de que a Comarca onde estava era muito boa porque lá o juiz era tratado como um “semi-deus”.
Thomas More, o grande humanista inglês, em cujo currículo se podem contar, dentre outros, os cargos de juiz, parlamentar e conselheiro do Rei Henrique VIII, demonstra com sua vida o grande desprezo que tinha pelas honrarias do cargo. Relata seu genro Roper ter visto com surpresa que, depois de cear com More, o rei saiu para dar um passeio em sua companhia. Enquanto caminhavam, Henrique VIII ousou colocar os braços por sobre os ombros de More, o que denotava incomum familiaridade, sobretudo em se tratando de um inglês. Quando encontrou com o sogro, Roper foi cumprimentá-lo, orgulhoso de que tivesse tal intimidade com o rei. More, contudo, que não se importava nem um pouco com isso, se limitou a responder ao genro: “Dou graças a Deus, filho, ao ver que Sua Majestade é verdadeiramente bom senhor comigo, e penso que me favorece não mais do que a qualquer outro súdito de seu reino. Não obstante isso, posso dizer-te, filho, que não existe razão alguma para orgulhar-se. É que, se com minha cabeça ele pudesse ganhar um castelo na França, por certo eu não a teria sobre o pescoço”.
Penso que poucas autoridades tiveram tão claro o quão frustrante e estéril é  galgar os cargos públicos tão-somente pelas honrarias que isso traz.
Há outros, que procuram no poder a dominação. Penso que isso seja mais perigoso e frustrante ainda. É que a vida dá tantas voltas, de modo que o julgador passa rapidamente a ser julgado; o administrador a administrado, enfim, o ministro, a um cidadão como outro qualquer.
Há, enfim, os desejosos de uma boa remuneração, de uma estabilidade econômica. Nisso, em si, não há nada de mal. Aliás, penso que os ocupantes de cargos que implicam grande responsabilidade devem ser bem remunerados. Não pretendo fazer desse espaço palco de defesa de interesses corporativistas, mas confesso ao leitor que sempre tive séria desconfiança com relação às pessoas que ocupam cargos públicos, tendo uma família para sustentar, não dão a mínima importância para o quanto ganham. A explicação disso somente pode ser uma: não precisam do salário porque têm outra fonte de renda, que, porém, pode ser lícita ou ...
Mas não é esse o foco da questão. A indagação é: a boa remuneração deve ser o fator que motiva a se buscar um cargo público?

Um grande sábio que viveu no século passado, durante toda sua vida repetiu uma frase que deve nos inspirar neste momento: “os cargos são cargas”. Isso é o que deve nortear a escolha e o modo de se exercer a função pública: o desejo de servir. E é somente isso que nos permite ter um auto-controle, muitas vezes difícil de se alcançar, que nos impeça de usar do cargo para obter vantagens indevidas, aquelas que se têm com a conhecida frase: “sabe com quem está falando?”.

quarta-feira, 22 de março de 2006

Prostituição

Há um mês, o jornal O Estado de São Paulo trouxe uma matéria sobre a Copa do Mundo, cuja introdução é a seguinte: “Febre de bola, nervos à flor da pele e muita bebida alcoólica. A Copa do Mundo está chegando e a indústria alemã do sexo está se preparando para trazer a excitação dos estádios para as casas de prostituição, clubes de massagem e cinemas pornográficos de todo o país. Estima-se que o número de prostitutas em atividade na Alemanha cresça em 30% durante as quatro semanas de junho e julho em que o mundial será realizado. Cerca de 40 mil novas profissionais devem ser recrutadas pela indústria do sexo em países da Europa Oriental nos próximos meses para atender à demanda esperada durante a Copa” (Edição de 19 de fevereiro de 2006, Caderno E4).
Muito se lutou no século passado para que a mulher alcançasse a igualdade de direitos com o homem. E, nesse intento, conseguiram-se consideráveis avanços em vários aspectos. No caso da prostituição, porém, as coisas caminham no sentido contrário. Ao invés de se lutar para eliminar essa forma mais brutal de escravização e discriminação da mulher, tem-se caminhado para uma artificial “legalização”.
Penso que o maior mal de nosso tempo seja o relativismo. Soa como verdadeira heresia falar em verdades absolutas, válidas para todos os seres humanos de todos os tempos e em todos as suas circunstâncias. Igualmente ganha a pecha de retrógrado e antiquado quem ousa sustentar a existência de um bem universal a nortear as ações humanas. Sustenta-se que tudo é relativo, bem e mal, certo e errado dependem sempre do ponto de vista, das opções pessoais de cada um, a tal ponto de se negar a existência de uma verdade. Verdade, nessa concepção, é o que cada um pensa ser.
E sendo assim, ou seja, se cada um pode “inventar o seu próprio pecado”, a conseqüência é encontrarmos cada vez mais pessoas desorientadas, que, por mais que se esforcem, não conseguem encontrar um significado verdadeiro para suas vidas. Mais que isso, se a noção de certo e errado é relativa, pode ser inventada por quem quer que seja, surge a necessidade de mecanismos para ao menos tornar possível a convivência em sociedade. E então se passa a forjar paliativos, quase sempre sustentados pela teoria do “mal menor”.
Tomemos como exemplo a questão do aborto. Numa sociedade tomada pelo relativismo, surgirá um que dirá: “para mim, a vida começa na quinta semana de gestação”; para outro: “para mim somente com o nascimento com vida”; outro ainda dirá: “inicia com a concepção”. E quem está certo? Essa pergunta não faz sentido numa sociedade relativista. Um autêntico relativista dirá que todos estão, ou seja, há uma verdade para cada um.
Então deve entrar em cena a teoria do “mal menor”. Como não há verdade absoluta, sequer sobre a vida humana, e há muitas mulheres que morrem por ano fazendo abortos clandestinos, vamos “legalizar” o aborto e ao menos isso se fará em condições de higiene, poupando a vida de milhares de mulheres.
Ocorre que uma sociedade relativista cedo ou tarde se converte em um rio que corre fora do leito. Cito outro exemplo. Temos observado nos noticiários os casos de mães que abandonam os filhos em sacos de lixo ao nascerem. Em breve virão os arautos do relativismo a sustentar que para algumas pessoas a vida humana somente começa aos dois anos de idade, quando se tiram as fraldas, então, será necessário que se criem instituições que ajudem-nas a colocar os filhos indesejados no lixo, como um “mal menor”, evitando-se, com isso, o sofrimento.
Que o leitor me desculpe a crueza dos argumentos, mas é exatamente o que ocorre com a “legalização” da prostituição. Numa sociedade relativista, dizer que a relação sexual é um ato de amor, de entrega total a ser vivida entre um homem e uma mulher, na qual cada um busca o bem do outro e, com essa doação mútua, abrem-se aos filhos, com a disposição de recebê-los e educá-los soa como loucura, ou, pior ainda, frases ditas por quem sofreu intensas sessões de lavagem cerebral e está fora de si.
Então, opta-se pelo “mal menor”. Como a prostituição é algo milenar e não há como evitar, dizem os hipócritas de plantão, então vamos legalizar para, com isso, buscar melhores condições de saúde à mulher que se entrega a isso.

Formar instituições que as acolham com respeito, que as dêem formação, mostrando a elas que podem sonhar em mudar de vida, encontrar um trabalho honrado, constituírem uma família se quiserem e, sobretudo, resgatar a dignidade como ser humano, nem pensar... Essas idéias são fruto de uma sociedade machista e preconceituosa, dirão os relativistas. E concluirão eles: “Afinal, tudo é relativo. Quem foi que disse que a prostituição é errado? Depende do ponto de vista...”.

quarta-feira, 1 de março de 2006

Quaresma

Inicia-se hoje, quarta-feira de cinzas, o tempo da quaresma. O Papa Bento XVI, no domingo passado, durante a tradicional reza do ângelus, lembrou a todos fiéis que esse tempo constitui “um grande memorial da paixão do Senhor, em preparação para a Páscoa da Ressurreição”. O Santo Padre lembrou também que a quaresma “não deve ser vivida como uma tarefa pesada e incômoda”, mas com “o espírito novo de quem encontrou em Jesus o sentido da vida”.
Em não raras vezes, nós, brasileiros, nos gabamos de dizer que o Brasil é a maior nação cristã do mundo. Porém, fazendo eco das palavras do Papa, penso que devemos nos questionar acerca de que tipo de cristianismo que estamos vivendo. O próprio Cristo, dentre os muitos ensinamentos que nos legou, deixou a condição para ser seu discípulo: “Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mc 8, 34).
A mensagem do Evangelho é tão clara que não há margem para interpretações que a anulem. Tomar a cruz de cada dia é, pois, condição essencial para seguir o Mestre. Assim, não se pode dizer que é cristão quem não esteja disposto a renunciar o afã de uma vida cômoda, aburguesada, para aceitar por amor as contrariedades que marcam o dia-a-dia.
Mas, diante do preceito, poderíamos nos perguntar: quais são as cruzes que devemos abraçar em pleno século XXI?
A resposta a essa indagação não é substancialmente diferente da que daria um cristão dos primeiros tempos do cristianismo. Ou seja, a cruz de cada dia que devemos abraçar são as contrariedades que marcam nosso cotidiano, seja ele qual for.
Será, por exemplo, o esforço por atender com cordialidade aos que nos procuram durante o nosso trabalho, ainda que as interrupções constantes atrapalhem a execução das tarefas que nos cabem.  As contrariedades consistirão em aceitar os defeitos do colega de trabalho, do marido, da esposa, sabendo que todos também temos muitos e talvez, com os nossos também incomodamos os demais.
Certa vez, um amigo meu pretendia fazer uma grande penitência na quaresma que agora não me recordo bem, mas acredito que fosse não comer carne durante todo esse período, e resolveu consultar o seu diretor espiritual acerca da conveniência disso. Esse respondeu ao meu amigo prontamente: “olha, acredito que seja um pouco exagerado não comer carne na quaresma inteira, pior, a penitência vai ser mais de sua esposa que sua, pois ela vai ter de ficar pensando o tempo todo no que pode e não pode fazer nas refeições”. Em seguida, aconselhou-o: “Por que você não se esforça por atender sempre com um sorriso às pessoas que atende em sua repartição? Ou, melhor ainda, faça o propósito de não brigar com a esposa nem falar com os filhos em tom de reclamação durante essa quaresma”.
E, falando em defeitos das pessoas com quem convivemos, uma boa cruz é corrigi-las, com respeito, no momento oportuno, mas com o propósito de ajudá-la a melhorar. Acontece que nós, muitas vezes, comentamos com terceiros acerca de um hábito negativo de um amigo, parente ou cônjuge, e, no entanto, somos covardes e sem coragem de dizer ao próprio interessado, e apenas a ele, o seu defeito para que possa melhorar.
As cruzes poderão vir, por vezes, de acontecimentos desagradáveis, mas que, no momento, não há nada que fazer. Será um carro que quebra, uma chuva que nos apanha no meio da rua, um revés econômico com que não contávamos, enfim, por diversos modos. E, diante disso, podemos assumir duas posturas antagônicas: esbravejar, reclamar, deixar-se dominar pelo mau humor; ou, como bom cristão, aceitar como oportunidade para crescer nas virtudes da paciência, da sobriedade, da humildade, do respeito.

Agora para concluir, gostaria de contar o fim da tragédia do meu amigo que queria ficar a quaresma toda sem comer carne. Depois de uma semana tentando cumprir a indicação que o sacerdote lhe deu, voltou ele com cara de derrotado: “Padre, não dá para trocar a penitência? Eu havia pensado em ficar os quarenta dias apenas comendo chuchu nas refeições e jaca de sobremesa, pois acho que isso eu conseguirei cumprir”.