segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Liberdade de expressão: também dos outros

Desde que chegou ao Brasil, a cubana Yoani Sánchez tem sido alvo de protestos de simpatizantes do governo de Cuba, em grande parte estudantes universitários. E as manifestações vão desde os ataques pessoais – chamam-na de “mercenária” e “agente da CIA” – até agressões físicas.
É uma questão tormentosa estabelecer os limites da liberdade de expressão. Instituir qualquer modalidade de censura prévia é um passo perigoso no sentido de amordaçar a imprensa, estratégia fartamente utilizada por todo regime totalitário, seja qual for a sua corrente ideológica.
Por outro lado, porém, permitir que divulguem livremente fatos, muitas vezes inverídicos e de maneira irresponsável, arruinando a honra e a vida das pessoas, também não parece muitas vezes razoável, ainda que os agressores possam ser punidos posteriormente.
Mas há um aspecto da questão que toca mais diretamente no ponto que estamos tratando: a liberdade de expressão vai ao ponto de se permitir os ataques pessoais e até impedir que o opoente possa se manifestar?
Penso que a resposta a indagações dessa natureza nos remete a considerar, uma vez mais, em toda a sua extensão e profundidade a incomensurável dignidade humana. Mas isso não pode ser uma mera consideração teórica, um discurso acadêmico ou, pior ainda, uma espécie de anestésico para acalmar os ânimos nas disputas entre grupos divergentes.  Trata-se de considerar – porque essa é a verdade – que cada mulher e cada homem que povoa o planeta é uma pessoa, única e insubstituível.
Esse modo “olhar o outro” terá consequências práticas. Trata-se, por exemplo, de ouvir com atenção e respeito – pela milésima vez... – o mesmo pedinte do semáforo, sempre com a mesma história. É o caso, também, de se esforçar por ser atencioso prestativo com o colega de trabalho, parente ou vizinho que nos é menos simpático.
E essa mesma postura nos levará a respeitar as pessoas que pensam radicalmente diferente de nós em matéria de política, religião, futebol ou qualquer outra questão opinável.
Assim, penso ser especialmente graves e inadmissíveis as agressões que mencionávamos no início. É perfeitamente possível não concordar em nada com as ideias do outro. Também será legítimo contrapor-se a elas e manifestar, de preferência com argumentos racionais, essa divergência. Contudo, sempre se deve preservar incólume a sua pessoa.
Esse mesmo critério é válido também quando se tem a certeza de que alguém está equivocado em determinado assunto. O respeito à pessoa do outro não depende da instauração do relativismo nas relações humanas. É possível chamar claramente o erro de erro, preservando sempre, porém, a pessoa e a honra daquele que erra.
Nesse aspecto, talvez o grande mal esteja no mau uso dos adjetivos. Tomemos um exemplo corriqueiro. O marido chega a casa atrasado por três vezes numa única semana. Na terceira vez, a esposa, cansada, diz: “você é sempre impontual”. Ou, pior ainda, o pai diante de uma nota baixa do filho desabafa: “você é um preguiçoso!”. Esse modo de falar, de expressar um pensamento, não contribui para um diálogo saudável, nem para suscitar uma disposição de melhora no outro.
Imaginemos que, nas mesmas situações, a esposa dissesse: “Querido, você chegou tarde três vezes nesta semana. Isso prejudica a dinâmica da nossa família. Há algo que possamos fazer para que isso não aconteça com tanta frequência?”. E o pai poderia dizer: “Filho, você não tirou uma nota boa nessa disciplina. O que podermos fazer para melhorar?”.

É claro que a linguagem jornalística ou mesmo os debates ideológicos não se podem tratar nesse mesmo nível. Por vezes as críticas poderão e deverão ser duras e contundentes. No entanto, devem se voltar para a reprovabilidade de ações praticadas, se for o caso, preservando, na medida do possível, as pessoas que as praticam. E na discussão das ideias, uma pitada de humildade e de saber escutar antes de falar talvez traga mais brilho e sabor ao diálogo.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Para entender a Igreja

O Papa Bento XVI surpreendeu o mundo na semana passada ao anunciar a sua renúncia. Além da perplexidade, penso que sua atitude também se mostra incompreensível para muitos. Com efeito, vimos o seu antecessor, o Papa João Paulo II, travar uma luta heroica contra a doença, mantendo-se convicto no seu ministério até o fim, apesar de notório o peso da idade e da doença, agravados pelas consequências do terrível atentado que sofreu. O Pontífice atual, ao contrário, anuncia que deixará o cargo num momento em que sequer nos era muito visível a sua debilidade.
Ao meditar nesse contraste, com o desejo sincero de entender o porquê, vem-me à memória uma aula de um professor, ainda nos tempos do colegial. Esboçava ele algumas explicações para a inusitada sobrevivência da Igreja por cerca de dois milênios. E aventava algumas explicações. Lembro-me de apenas duas. A primeira seria a comprovada existência histórica do seu Fundador. A outra seria o que chamava de uma grande capacidade de se “adaptar” aos diversos regimes políticos que marcaram a idade antiga, média e moderna.
Com profundo respeito a esse grande mestre, penso que é impossível entender a Igreja sob uma perspectiva puramente humana. O estudante de medicina, já nos primeiros anos de seus estudos, põe as mãos num cadáver para entender melhor a anatomia humana. Não ignoram, porém, que aquele corpo morto não é um homem. Falta-lhe a alma que, unida àquela matéria, dava-lhe vida e uma existência plena e única.
De igual modo, querer entender a Igreja sem se atentar para o Espírito Santo que a vivifica é o mesmo que estudar um organismo morto. E esse modo de observar o objeto do estudo serve para compreendê-la externamente como uma instituição humana. Porém, jamais poderá compreender a sua ação no mundo e na história.
Num dos seus primeiros pronunciamentos como sucessor de Pedro no governo da Igreja, o Papa Bento XVI dizia que o seu plano de governo era não ter plano de governo. Se o Presidente de uma República ou um Primeiro Ministro fizesse tal pronunciamento ao assumir o cargo, por certo cometeria um suicídio político. Com efeito, numa democracia elege-se, antes que uma pessoa, um projeto. O Papa, como dirigente da Igreja, apesar dos seus inegáveis dotes intelectuais e capacidade para governar, fazia tal afirmação precisamente porque sabia que não governaria o povo de Deus apenas com a sua inteligência e vontade, mas, sobretudo, com a sua docilidade às moções do Espírito Santo.
Conta a tradição que o apóstolo Pedro saia de Roma, fugindo da perseguição do imperador Nero. Enquanto o fazia, encontra Jesus na Via Ápia e lhe pergunta, “Aonde vais Senhor?” (Quo vadis Domine?) E o Senhor lhe responde: “Volto para Roma para ser crucificado”. Então o discípulo entende a mensagem e volta a Roma, onde dá a vida por Cristo.
Não é exagerado supor que o mesmo Senhor instava o saudoso João Paulo II a se manter firme até o último de seus dias. E, de igual modo, ainda que aparentemente paradoxal, é o mesmo que agora insta o valente Papa Bento XVI a entregar o cargo ao seu sucessor quando o lhe falta o vigor físico. São palavras suas: “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino”.
E o mais maravilhoso é que o Espírito Santo não age apenas na cabeça da Igreja. Tal como o espírito inunda cada órgão do ser humano, que unidos exercem a sua indispensável função vital, Deus age em cada membro da Sua Igreja, mais ainda, em cada homem e em cada mulher, independentemente da sua condição, sexo ou religião. Basta manter bem aberto os ouvidos da alma para vislumbrar os seus sussurros a cada minuto: “de uma esmola e um sorriso a esse que te pede”, “seja mais carinhoso com tua esposa (ou com teu marido)”, “esmere-se mais na educação dos teus filhos”.

Nesse contexto, o que seria então estar neste mundo sem a magnífica luz da fé? Penso que seria mais ou menos como que o estudante de medicina se contentasse com dissecar cadáveres: Jamais entenderia o que é a Vida, em sua essência.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Trabalhadores descartáveis?

Há poucos dias um amigo observou, em tom de crítica, que um funcionário que fica incumbido de controlar o acesso a uma determinada repartição, poderia ser facilmente substituído por um sistema de controle eletrônico, o que por certo reduziria os custos.
Essa observação fez recordar o contexto vivenciado atualmente na Europa. Lá é usual o motorista se encarregar de colocar combustível no veículo. Além disso, as máquinas de café, salgadinho e até de sopa estão espalhadas a todo canto.
Poucos dias naquele cenário envelhecido são suficientes para sentir imensa saudade de umas palavras amistosas com o frentista, talvez com uma ou outra brincadeira futebolística, ou mesmo de pedir um café e um pão de queijo a uma pessoa de carne e osso, a quem se pode olhar nos olhos e terminar a operação com um sincero “muito obrigado”.
É inegável que a modernidade trouxe avanços tecnológicos que permitem melhorar as condições de trabalho. Mas será que a mecanização da indústria, e agora também do comércio, tem se pautado no rumo de melhorar a condição do ser humano que trabalha? Ou a tônica é reduzir custos?
Mesmo dentro da lógica de aumentar o lucro a todo custo, apenas automatizar – substituir homem por máquina, pode ser o último recurso de gestores medíocres. Competir em custo nunca é bom. Sempre existe alguém que está disposto a entregar um serviço pior, por um preço menor. Nesse caso, os clientes podem comprar essa solução por falta de empresários realmente empreendedores.
Também não se trata de inventar trabalhos desnecessários, simplesmente para manter as pessoas ocupadas, com iniciativas do tipo cavar um buraco pela manhã para tapá-lo a tarde. Mas devemos sim refletir sobre quais trabalhos podem ou devem ser substituídos pela máquina e por quê.
A questão não é simples. Por certo muitos dirão que a concorrência é cada vez mais acirrada, de modo que a redução de custos e, por consequência, do preço é questão de sobrevivência. Apesar disso, e sem pretender agir com ingenuidade, há de se estabelecer um critério a nortear as decisões das pessoas com isso relacionadas: empresários, governantes, legisladores...
E o critério penso que deve ser a promoção da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o avanço tecnológico deve estar a serviço da vida com qualidade para todos.
Muitas empresas já viram isso. Talvez a Toyota tenha sido a que o fez com maior sucesso e primeiramente. O modo de sair deste dilema entre homem e máquina é empregar homem onde ele é efetivamente muito melhor que a máquina. E deixar para a máquina tarefas onde ela é melhor, também para promover a dignidade de quem é dispensado daquela função.
Esse critério poderá, por exemplo, levar a dispensar o trabalho dos cortadores de cana – que agride severamente a sua saúde em condições inóspitas – por máquinas que fazem a mesma operação, conquanto que haja uma política consistente de emprego para os mesmos. E, por outro lado, poderá dispensar máquinas onde o sorriso e o bom dia bem real se fazem insubstituíveis.
Penso que num futuro próximo, só empresas que usem de modo efetivo as competências e habilidades humanas em conjunto com a automação das máquinas sobrevirão.

Nesse admirável mundo novo em que estamos inseridos, talvez um grande desafio seja usufruir da tecnologia sem prejuízo para a qualidade das relações humanas. Mais ainda, que os avanços as fomentem e aprimorem. A propósito, quem não gostaria que o médico fosse sempre bem atencioso ao que dizemos e sentimos, talvez com a mesma atenção com que procura na tela do seu computador os resultados dos complicados e sofisticados exames que solicita?

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Crise de confiança

Um incidente, talvez secundário, na terrível tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria, é o fato de que os seguranças teriam dificultado a saída de pessoas, com receio de que deixassem de pagar a conta de consumação.
Isso nos revela um problema crônico de desconfiança arraigado em nossa sociedade. Lembro-me de quando ainda era criança, alguém contou que, em determinado País, havia lojas sem vendedor, de modo que os produtos ficavam expostos e o comprador deixava o dinheiro e retirava o que desejava. E a mesma pessoa que fazia o relato, concluía: “se fizessem isso aqui no Brasil...”.
E outros exemplos como esse poderiam se facilmente encontrados, que revelam uma baixa autoestima quanto aos atributos morais do brasileiro. Talvez o mesmo fundamento que teria levado os seguranças da boate a supor que alguém pudesse se aproveitar do incêndio para sair sem pagar a conta, é o que leva, por exemplo, as companhias de seguro a exigir infindáveis documentos antes de pagar a indenização, no pressuposto de que o segurado está de má-fé até que prove o contrário, ou mesmo a exigência burocrática de provarmos a todo tempo que estamos dizendo a verdade, que somos honestos etc.
Certa vez fui abordado por um policial rodoviário que, como de costume, solicitou os documentos. Enquanto procurava a carteira, a minha filha, então com cinco anos, perguntou: “Pai, por que ele quer ver os documentos?”. “Para verificar se está tudo em ordem”, respondi sem desviar a atenção do que estava fazendo. “E está em ordem?”, insistiu ela. “Sim, está”, disse eu. “Pois então diga ao guarda que está tudo certo e vamos embora...”, concluiu ela em toda a sua ingenuidade.
Como seria bom viver numa sociedade em que a simples palavra merecesse confiança! E como é fundamental a sinceridade nas relações humanas! Nossa vida seria insuportável se tivéssemos de desconfiar de tudo e de todos. Por exemplo, se observamos as sinalizações de trânsito, é legítimo supor que de fato nos conduzem ao destino esperado. Se buscamos uma informação na rua, supomos que a pessoa nos diz a verdade. Se nos unimos em matrimônio a outra pessoa com a promessa de que o fazemos por toda a vida é, também, de se esperar que se colocará todos os meios para honrar esse compromisso.
Assim, se a confiança é fundamental nas relações humanas, é necessário criar toda uma cultura que a favoreça. E os pais devem começar desde cedo. Para isso, é necessário que sejam radicalmente sinceros com os filhos, não mentido jamais para eles. É claro que nem tudo pode ou deve ser dito, mas silenciar é muito diferente de mentir. E, depois, devem também fomentar a confiança neles. Os pais devem procurar acreditar sempre nos filhos. É claro que não se há de ser ingênuo, porém, é muito melhor que sejamos enganados uma vez ou outro do que por uma vez sequer e mesmo que em assunto de pequena importância, demonstremos injustamente desconfiança.
Talvez um segundo passo seria se criar uma cultura da confiança nas instituições públicas e privadas. Com a devida prudência, pensar que as pessoas nos dizem a verdade até que haja um motivo razoável para pensar o contrário pouparia inúmeros aborrecimentos e tornaria a vida mais fácil a todos.
É claro que seria necessário um contraponto. Assim, penso que a punição dos desonestos e daqueles que comprovadamente faltam com a verdade por palavras ou ações deveria ocorrer com muito maior rigor. Com efeito, se a sinceridade é essencial para o convívio social, a mentira, a dissimulação, a fraude e o estelionato deveriam ser punidos com maior rigor, pois se tratam de um câncer que corrói as bases de uma convivência saudável.

"Não tenhas medo da verdade, ainda que a verdade te acarrete a morte", costumava dizer um grande homem. Mais ainda, dizia também ele que preferia acreditar no que lhe dizia um filho seu mesmo que cem notários juntos dissessem o contrário. É claro que a frase precisa ser bem entendida e não pode se transformar num estímulo à imprudência.  Mas a nossa sociedade reclama por sinceridade e confiança. E isso não apenas para não se pensar que as pessoas possam se aproveitar de um incêndio para não pagar uma conta, mas também para que a atual e as futuras gerações possar ver e crer que quando inserimos em nossa Constituição a supremacia do direito à vida estámos a dizer a verdade.