Há alguns anos presenciei um debate descontraído entre dois amigos
universitários. Falavam sobre a morte e o sentido da vida. Um deles sustentava
que o corpo é apenas uma espécie de invólucro que abriga o espírito. O outro,
que seguia por uma vertente mais materialista, sustentava: “tudo bem, só que
isso que eu sou – e fez um gesto com as mãos apontando para si – eu não serei
após a morte”.
O mundo mudou bastante desde então. Vivemos hoje, mais que naquela época,
numa sociedade em que predomina a cultura hedonista, que move as pessoas a
buscarem o prazer a qualquer custo. Por outro lado, a medicina evoluiu de forma
fantástica. No entanto, os avanços não foram apenas no sentido da prevenção e
cura de doenças, mas também para criar mecanismos para os indivíduos moldarem o
próprio corpo. Já se fala em mudança de sexo.
As cirurgias plásticas não mais se prestam apenas para corrigir
anomalias, mas se pode modificar, ao gosto de cada um, a face, os membros, a
estatura, a cor da pele etc.
Nesse cenário, como nos vemos a nós próprios nesse conturbado início de
milênio? Sou esse corpo animado por uma alma e vivo para um fim transcendente?
Ou sou dono desse corpo, moldável ao meu próprio gosto, que me há de servir apenas
como instrumento para buscar o prazer?
Esse último postulado é, sem dúvida, um resumo da cultura dominante em
nosso tempo, ainda que com variações quanto às formas de manifestação e intensidade.
Porém, será ele apto a promover de verdade a dignidade humana?
Um dos aspectos que torna manifesta a contradição dessa concepção é a maneira
com que se encara o sacrifício. Essa palavra soa como uma heresia no mundo
moderno. Dirão seus adeptos: “Que absurdo perder o tempo criando filhos. Dão
trabalho, choram de noite...”. No entanto, submetem-se a dores mais intensas
que a do parto em cirurgias plásticas, lipoaspirações etc. Parece absurdo
perder noites de sono para cuidar dos filhos pequenos ou doentes, mas se perdem
as mesmas noites de sono na internet! No fundo, não é do sacrifício que fogem
as pessoas nesse admirável mundo novo. Aliás, quanto sacrifício se faz nas
academias de ginástica, nas clínicas de beleza e no próprio trabalho alucinante
que rouba todo o tempo que se poderia dedicar à família. Fogem, isso sim,
daquele sacrifício abnegado pelo próximo (filho, marido, esposa, amigos) e por
amor. Mas estão felizes com esse viver somente para si?
Outra falácia da cultura hedonista está em pregar o “sexo livre” e
irresponsável. De fato, se o que importa é apenas o prazer, a sexualidade
encontra posição de destaque, afinal, poucas atividades o proporcionam de
maneira tão intensa. No entanto, não se preocupa em explicar o “day after”, ou
melhor, o “second after” ao ato sexual: o amargo na boca e o vazio na alma de
quem abusou e se deixou abusar do próprio corpo como se fora mero objeto,
esquecendo-se de sua dimensão afetiva e mesmo racional do ser humano.
O prazer não é ruim nem reprovável. Contudo, é enganoso considerá-lo como
um fim em si mesmo. Aliás, com todo o respeito a quem pensa diferente, o ato
sexual é muito mais prazeroso para o casal que vive a fidelidade e se esforça,
por anos e anos, em fazer o outro feliz, inclusive nesse momento.
Ainda que não seja muito difícil expor as armadilhas da cultura
hedonista, não é igualmente fácil responder à indagação a que nos propomos
(somos ou temos um corpo?). Apelo, pois, à simplicidade das crianças. A minha
filha, Maria Clara, de oito anos, gosta de ir ao cemitério. Numa tarde resolvi
indagar: “Filha, como você pode gostar de vir aqui? Ninguém gosta disso, tanto
menos com a sua idade”. “Mas eu gosto”, respondeu ela. E depois explicou: “Quando
vejo os túmulos dessas pessoas que já morreram fico um pouco triste, mas, ao
mesmo tempo, muito contente. Fico triste por pensar que os corpos delas estão
enterrados aí em baixo, mas quando penso que elas estão num lugar muito melhor,
perto de Deus, isso me deixa muito contente por elas. Além disso, gosto de
pensar no dia em que elas terão novamente seus corpos muito lindos no Céu”.
Depois de um breve silêncio, completou ela: “foi a minha professora de religião
quem me disse que nossos corpos ressuscitarão...”.
Como seria mais simples e belo o mundo se nos inspirássemos na pureza e na
simplicidade das crianças!
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