segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Educação: obrigação da família ou do Estado?

Em nosso último artigo tratamos do Programa Escola sem Partido. Naquela oportunidade pareceu-nos conveniente esclarecer alguns pontos relevantes do Projeto de Lei que tramita na Câmara Municipal de Campinas, aliás, já aprovado ou em tramitação em inúmeros outros municípios. E então analisamos a questão sob o enfoque do direito dos professores à manifestação do pensamento no exercício do magistério, em especial, se a aludida norma não viria a restringir ou mesmo violar tal direito. 

Penso que é oportuno retomar o tema para aprofundá-lo. Isso porque ainda não chegamos ao cerne da questão. E o caminho para isso depende da resposta à seguinte indagação: a quem compete originariamente a educação?
A nossa Constituição Federal, no seu artigo 205, dispõe: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Daí não se pode concluir, ao menos numa análise isolada desse dispositivo, a quem cabe a primazia na educação, ou seja, se à família ou ao Estado.
E tal discussão não é meramente acadêmica. Bem ao contrário, possui consequências muito práticas nas nossas vidas. Por exemplo, poderiam os pais se opor a que determinados temas sejam tratados em sala de aula numa escola pública por contrariar suas convicções filosóficas, religiosas etc.?
A nossa Constituição, noutros dispositivos, permite concluir que a educação é um direito e um dever da família. Dispõe o artigo 226: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. E, na sequencia, o artigo 227 atribui á família, ao lado do Estado e da sociedade, o dever de proporcionar a educação às crianças e adolescentes.
Mas a primazia dos pais na educação dos filhos é um direito natural que antecede a própria norma editada pelo Estado. Isso porque a geração e a educação são como que as duas faces da maternidade e da paternidade. O ato de transmitir a vida e o correlato direito/dever de prestar os cuidados e de dar a formação para que o novo ser possa atingir a sua plenitude são, de certo modo, indissociáveis.
É certo que em muitas situações, seja pela morte dos pais, seja pelo abandono mesmo, a educação é confiada a outras famílias que, no mais das vezes, desempenham esse papel com generosidade e carinho inigualáveis. Mas isso não exclui, antes confirma a responsabilidade dos pais, tanto que se cuida de colocar outros no seu lugar quando por qualquer motivo vêm a faltar na educação da prole.
Nada marca mais acentuadamente a natureza humana que o amor. Cada mulher e cada homem vêm à existência com ânsias de serem amados e, também, de manifestar esse mesmo amor aos demais. Nesse sentido, dar a vida e cuidar da sua formação para que ela atinja a sua plenitude se integram numa mesma realidade, ambas atribuídas primariamente à mãe e ao pai. Com efeito, o amor deles pelos filhos se manifesta no ato de dar a vida e se prolonga na educação que lhes darão em seguida.
Nesse sentido, o dever do Estado promover a educação se exerce, antes de tudo, respeitando essa realidade mais essencial da natureza humana. Bem por isso que a sua atribuição primordial é a de apoiar os pais na educação dos filhos. Aliás, é uma característica marcante de todo regime totalitário buscar o enfraquecimento da família, chamando para o Estado a função de educar, precisamente para fazer da educação um instrumento de perpetuação no poder.

Há muito tempo cantamos em nosso Hino Nacional que “dos filhos deste solo és mãe gentil”. Essa “maternidade” (ou paternidade) da pátria, porém, somente pode ser considerada legítima se promover a maternidade e a paternidade das mães e dos pais (naturais ou adotivos), chamados a um protagonismo atuante e diligente na educação das suas filhas e dos seus filhos. 

Escola sem Partido

Tramita na Câmara Municipal de Campinas um Projeto de Lei (PLO 213/17) que visa instituir no sistema municipal de ensino o Programa Escola sem Partido. Quando li pela primeira vez o texto da proposta, dois aspectos chamaram-me a atenção. O primeiro deles está no inciso I do artigo 1º, que institui como princípio a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. E segundo está no inciso I do artigo 3º, que dispõe que o professor “não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”. 

E confesso que tais dispositivos me causaram certa perplexidade. É que, como se poderá exigir neutralidade do professor? Haveria de ser ele uma espécie de expositor apático de conteúdos didáticos? Seria alguém facilmente substituível por um programa de computador? Ou, pior ainda, não poderia manifestar suas opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias?
Tais questionamentos, porém, não resistem a uma análise atenta e com boa-fé do texto da Lei. É que não se exige neutralidade do professor, mas do Estado. Esse não poderá adotar uma ideologia oficial a orientar a confecção do material didático, por exemplo. O professor não é nem pode ser neutro. Aliás, nenhum ser humano o é. Cada mulher e cada homem nascem numa família, vivem e são educados num contexto social, optam por um curso superior etc. Além disso, têm toda uma experiência de vida. Tudo isso exerce uma enorme influência na formação da personalidade, de modo que é essa professora e esse professor em concreto que entram na sala de aula, não sendo razoável, nem possível abstrair disso tudo no ato de ensinar.
Quanto ao segundo ponto acima mencionado, convém ressaltar que não se proíbe que a professora ou o professor manifestem suas opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas ou partidárias. O que se pretende evitar é a promoção dos próprios interesses nessas questões.
Dir-se-á, talvez, diante dessa aparente sutileza jurídica: qual é a diferença? Não seria muito tênue a linha divisória entre manifestar e promover? Tenho, porém, que a diferença é enorme. E o critério de distinção está precisamente no propósito com que se exerce o magistério ou qualquer outro tipo de liderança.
Há pessoas que possuem uma causa, um ideal ao qual dedicam as suas melhores energias, trabalhos e esforços. E o fazem com tal afinco e determinação que todos os demais seres humanos são classificados em duas categorias: (1) aqueles que compartilham ao menos em parte dos mesmos ideais e então podem ser aliciados como companheiros aptos a se alistarem nas mesmas fileiras de batalha; (2) as que não comungam das mesmas opiniões ou convicções, que são os inimigos a serem eliminados ou, quando menos, neutralizados com campanhas difamatórias que busquem ridicularizar as suas maneiras de ser e de pensar.
Mas há outras pessoas que igualmente possuem um ideal de vida, assim como uma causa pela qual lutam com afinco e determinação. Porém, sabem enxergar nos demais seres humanos pessoas dotadas de uma dignidade infinita. Por consequência, mesmo quando procuram contagiar os outros a perseguirem ideais semelhantes, fazem-no buscando exclusivamente o bem do outro e não simplesmente engrossar um exército para a batalha. Em suma, sabem colocar a pessoa humana acima do próprio ideal ou da causa pela qual lutam. Mais ainda, com grande frequência, o bem do outro é a sua grande causa e o maior ideal.

Dentre os primeiros estão, por exemplo, os aliciadores de jovens e crianças convocados para se tornarem futuros “homens-bomba” do chamado estado islâmico. Dentre os segundos podemos contar, ao lado de inúmeras outras pessoas, a Madre Teresa de Calcutá. O que se pretende com o aludido Projeto de Lei é que as nossas professoras e os nossos professores façam essa segunda opção. Em suma, que tenham um profundo respeito à liberdade das suas alunas e dos seus alunos.