Um incidente, talvez secundário,
na terrível tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria, é o fato de que os
seguranças teriam dificultado a saída de pessoas, com receio de que deixassem
de pagar a conta de consumação.
Isso nos revela um problema
crônico de desconfiança arraigado em nossa sociedade. Lembro-me de quando ainda
era criança, alguém contou que, em determinado País, havia lojas sem vendedor,
de modo que os produtos ficavam expostos e o comprador deixava o dinheiro e
retirava o que desejava. E a mesma pessoa que fazia o relato, concluía: “se
fizessem isso aqui no Brasil...”.
E outros exemplos como esse
poderiam se facilmente encontrados, que revelam uma baixa autoestima quanto aos
atributos morais do brasileiro. Talvez o mesmo fundamento que teria levado os
seguranças da boate a supor que alguém pudesse se aproveitar do incêndio para
sair sem pagar a conta, é o que leva, por exemplo, as companhias de seguro a
exigir infindáveis documentos antes de pagar a indenização, no pressuposto de
que o segurado está de má-fé até que prove o contrário, ou mesmo a exigência
burocrática de provarmos a todo tempo que estamos dizendo a verdade, que somos
honestos etc.
Certa vez fui abordado
por um policial rodoviário que, como de costume, solicitou os documentos.
Enquanto procurava a carteira, a minha filha, então com cinco anos, perguntou:
“Pai, por que ele quer ver os documentos?”. “Para verificar se está tudo em
ordem”, respondi sem desviar a atenção do que estava fazendo. “E está em
ordem?”, insistiu ela. “Sim, está”, disse eu. “Pois então diga ao guarda que
está tudo certo e vamos embora...”, concluiu ela em toda a sua ingenuidade.
Como seria bom viver
numa sociedade em que a simples palavra merecesse confiança! E como é
fundamental a sinceridade nas relações humanas! Nossa vida seria insuportável
se tivéssemos de desconfiar de tudo e de todos. Por exemplo, se observamos as
sinalizações de trânsito, é legítimo supor que de fato nos conduzem ao destino
esperado. Se buscamos uma informação na rua, supomos que a pessoa nos diz a
verdade. Se nos unimos em matrimônio a outra pessoa com a promessa de que o
fazemos por toda a vida é, também, de se esperar que se colocará todos os meios
para honrar esse compromisso.
Assim, se a confiança é
fundamental nas relações humanas, é necessário criar toda uma cultura que a
favoreça. E os pais devem começar desde cedo. Para isso, é necessário que sejam
radicalmente sinceros com os filhos, não mentido jamais para eles. É claro que
nem tudo pode ou deve ser dito, mas silenciar é muito diferente de mentir. E,
depois, devem também fomentar a confiança neles. Os pais devem procurar
acreditar sempre nos filhos. É claro que não se há de ser ingênuo, porém, é
muito melhor que sejamos enganados uma vez ou outro do que por uma vez sequer e
mesmo que em assunto de pequena importância, demonstremos injustamente
desconfiança.
Talvez um segundo passo
seria se criar uma cultura da confiança nas instituições públicas e privadas.
Com a devida prudência, pensar que as pessoas nos dizem a verdade até que haja
um motivo razoável para pensar o contrário pouparia inúmeros aborrecimentos e
tornaria a vida mais fácil a todos.
É claro que seria
necessário um contraponto. Assim, penso que a punição dos desonestos e daqueles
que comprovadamente faltam com a verdade por palavras ou ações deveria ocorrer
com muito maior rigor. Com efeito, se a sinceridade é essencial para o convívio
social, a mentira, a dissimulação, a fraude e o estelionato deveriam ser
punidos com maior rigor, pois se tratam de um câncer que corrói as bases de uma
convivência saudável.
"Não tenhas medo da
verdade, ainda que a verdade te acarrete a morte", costumava dizer um
grande homem. Mais ainda, dizia também ele que preferia acreditar no que lhe
dizia um filho seu mesmo que cem notários juntos dissessem o contrário. É claro
que a frase precisa ser bem entendida e não pode se transformar num estímulo à
imprudência. Mas a nossa sociedade
reclama por sinceridade e confiança. E isso não apenas para não se pensar que
as pessoas possam se aproveitar de um incêndio para não pagar uma conta, mas
também para que a atual e as futuras gerações possar ver e crer que quando
inserimos em nossa Constituição a supremacia do direito à vida estámos a dizer
a verdade.
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