segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Lições da dificuldade econômica

 

A pandemia virou a nossa cabeça e as nossas vidas de pernas para o ar. Ainda estamos tentando nos encontrar nessa nova situação. Fala-se num “novo normal” – confesso que não gosto dessa expressão – que surgirá após esse tempo que tem testado a nossa paciência, a nossa fortaleza e – por que não dizer? – a nossa fé. Um ponto muito sensível e que merece especial atenção é a questão econômica. Quando as contas apertam, isso pode prejudicar o relacionamento com as nossas esposas, com os nossos maridos, abalando a paz na família.

As pessoas que se encontram em dificuldade econômica – e estou certo de que é a maioria – precisam desenvolver três pontos de luta, antes que a preocupação que as assola possa redundar numa crise de nervos, ou mesmo problemas psicológicos mais graves, como uma depressão. E penso que o esforço para se enfrentar com serenidade esses momentos pode se desenvolver em três aspectos das nossas vidas.

O primeiro deles é a imaginação. Já se disse que é a “louca da casa”. Ela não é ruim. A literatura, o cinema e a arte em geral encontra nela uma importante aliada. E não só isso. Precisamos dela para desfrutar de um bom livro ou reconstruir mentalmente uma cena que nos é contada. Porém, se a deixamos solta quando algo nos preocupa, talvez nos sugira que vai nos faltar o necessário, que vamos “quebrar” etc.

A outra é a memória. A necessidade dela dispensa comentários. Porém, também pode exercer um papel negativo. Talvez ficamos pinçando acontecimentos passados das nossas vidas para colocar na nossa esposa ou no nosso marido a culpa por uma dificuldade que estejamos passando.

E um terceiro ponto são os pensamentos distorcidos atuam para nos afundar. Conheço pessoas que perdem o sono tentando buscar uma solução para os problemas, remoendo coisas negativas enquanto tentam – em vão – pregar no sono, que não vem...

Mas, o que fazer? É que não podemos controlar – ao menos diretamente – esses atributos da alma humana. Com efeito, não adianta dizermos para nós mesmos: “não posso pensar nisso agora” ou “não convém trazer tais recordações nesse momento”. Eles simplesmente vêm sem que tenhamos total controle.

No entanto, devemos considerar que, se não conseguimos enfrentá-los diretamente, se não adianta adianta “brigar” contra eles, podemos atuar indiretamente, preenchendo o nosso tempo com outras coisas. Assim, podemos desviar a memória, a imaginação e os pensamentos para coisas mais agradáveis. Ler um bom livro, assistir um filme, ouvir uma música, esforçarmo-nos para mergulhar seriamente no trabalho no tempo que tivermos de dedicar a isso e, principalmente, ocuparmo-nos dos outros. Quando estamos ocupados com os demais, não sobra tempo para pensar em bobagens.

Talvez nos dirá: “mas isso não é fugir do problema?”. NÃO! No momento certo, com a cabeça fresca, devemos pensar em todas as possibilidades, com serenidade. Mais ainda, se somos casados, marido e mulher devem analisar juntos a situação, sem acusações, com esperança e otimismo. E, se depois de analisar por todos os lados, não surgir uma solução humanamente viável, pode-se considerar que “o que não tem solução, solucionado está”. O importante é não perder a paz.

Agora, para aquelas e aqueles que têm fé, talvez seja o caso de uma última consideração: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois que o dia de amanhã se o preocupará de si mesmo. Basta a cada dia o seu afã” (Mt 6, 34).

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Crimes verdadeiramente hediondos

 

                 

                Causou perplexidade o aborto em uma menina de 10 anos, que engravidou em decorrência de abusos sexuais. Ressalto que estou impedido de me manifestar sobre decisões judiciais. Mas temos o direito de discorrer sobre a questão em si. E confesso ao leitor que a primeira coisa que me veio à cabeça ao refletir sobre o tema foi o seguinte: “o que faria se a vítima desse crime hediondo fosse minha filha?”.

As ações a serem tomadas seriam muitas e impossíveis de serem enumeradas agora, até porque dependeria das circunstâncias concretas. Mas há uma postura de fundo que é universal: afogar o mal em abundância de bem.

Assim, penso que a atitude que tomaríamos seria cuidado, carinho, acolhida, compreensão, em uma palavra: AMOR. Isso implicaria uma gama de ações, tais como acompanhamento psicológico, atendimento médico adequado e humanizado. Mas dentre as inúmeras possibilidades para cuidar dessa mulher – no caso, dessa menina – que foi vítima de uma violência sexual horrorosa, não estaria em absoluto, a possibilidade de tirar a vida do bebê que ela traz no ventre.

Lembro-me do pós-parto do nosso sétimo filho. Ele teve uma complicação respiratória poucas horas após o nascimento e, por isso, foi encaminhado à UTI neonatal. Foram dias muito difíceis. Os pais que já passaram por isso sabem a angústia e sofrimento que permeia essa situação. Passado o susto inicial, fiquei simplesmente encantado com o serviço prestado pela Maternidade de Campinais. Ao contemplar o carinho que dedicavam aos pacientes, aquelas enfermeiras me pareciam uns anjos com a forma humana. E isso não se deve ao fato de ser paciente de plano de saúde, pois ali todos tinham exatamente o mesmo atendimento.

Ali na UTI neonatal, bem ao lado do nosso filho, Rafa, estava outro bebê, que elas apelidaram carinhosamente de Pedrão. Era um bebê que nasceu de 21 ou 22 semanas, pesava cerca de 600g e que lutava a duras penas para sobreviver. Nunca fiquei sabendo por que aquela criatura estava ali. Mas as circunstâncias indicavam que a mãe fez uma tentativa de aborto “mal” sucedida. Sim, porque o bebê nasceu com vida.

Com isso, sempre que se fala em aborto, principalmente quando a gestação está mais avançada, vem-me à memória o Pedrão. Não sei se ele resistiu e sobreviveu, mas sou testemunha de que lutou para viver. E era de encher os olhos – de alegria e de dor – ver o carinho com que aquelas moças, verdadeiras profissionais da saúde a serviço da vida, cuidavam dele, dia e noite...

Creio que já disse o que penso e que posso dizer sobre o caso que nos propõem. Mas ouso acrescentar algo mais. Muitos de nós, cristãos, fazemos muita gritaria em defesa da vida, principalmente em casos dessa natureza. E devemos mesmo lutar mesmo para que o respeito à vida, desde o nascimento até o seu fim natural, seja assegurado nas Leis, nas políticas públicas, nas ações dos governantes, na sociedade, na nossa família e em cada um de nós.

Não nos esqueçamos, porém, que é preciso acolher essas mulheres, que por motivos que não nos cabe julgar tenham cometido esse erro terrível. Com efeito, se elas um dia forem atrás desses algozes que trabalham para tirar a vida de um ser inocente, e se disserem arrependidas, talvez ouçam algo do tipo: “que nos importa, é lá convosco”. Mas um cristão autêntico não pode agir assim! É preciso acolher, é preciso compreender, é preciso perdoar. É preciso, enfim, um amor que seja cautério que cicatrize as feridas, muitas vezes profundas, deixadas pelos inimigos da vida.


quarta-feira, 29 de abril de 2020

Um homem que não vendeu a sua alma


Thomas More, o célebre humanista inglês, foi eternizado pela história como o “mártir da consciência”. Ele foi advogado, membro do Parlamento, Diplomata e chegou a ser Chanceler do Reino, o que equivalia ao de Juiz supremo, embora o cargo abrangesse também funções administrativas. E isso sem contar seu invejável dote literário, autor de inúmeros escritos, dentre os quais nos legou sua obra mais famosa: Utopia.
Apesar de todo esse sucesso, como sabemos, More teve um fim trágico. Instado por Henrique VIII a prestar um juramento que contrariava a sua consciência, negou-se veementemente a fazê-lo. Por isso, foi julgado e condenado à morte.
Um detalhe muito significativo da vida deste grande santo ocorreu nos seus últimos instantes de vida. Quando caminhava para ser decapitado, uma mulher “recriminou-o por ter dado uma sentença contra ela quando Chanceler; More respondeu-lhe sem a menor amargura: ‘Lembro-me bem do teu caso. Se tivesse que dar a sentença de novo, seria exatamente a mesma’” (A sós, com Deus. Escritos da Prisão).
Confesso ao leitor que, como juiz, sempre que leio essa passagem, um calafrio sobe pela espinha. Com efeito, no entardecer da nossa passagem por vida terrena, poderemos ter uma consciência tão tranquila como demonstrou More tê-la nesses momentos derradeiros?
O exemplo de Thomas More brilha na história como um homem que não se curvou às injustas exigências de um tirano!
A sua vida é um testemunho que nos alerta sobre a radical importância de todo ser humano seguir os ditames da sua consciência, ainda que isso implique perder a honra, cargos, a possibilidade de êxito profissional e até a própria vida por uma causa justa.
A história de Thomas More se repete, também aqui no nosso País e, de certo modo, na vida de cada um de nós. Muito provavelmente não correremos o risco de perder a vida ao tomar uma decisão que nos parece correta. No entanto, muitas vezes iremos nos deparar com situações em que agir de acordo com a ética implicará perder dinheiro, oportunidade de negócios, emprego ou até mesmo termos a nossa honra vilipendiada em campanhas difamatórias, tão comuns nesses tempos em que a notícia – e, com ela, a mentira, os chamados “fake News “ – corre numa velocidade frenética.
É muito triste notar como não se age de acordo com a consciência, mas segundo interesses. Já os Evangelhos nos trazem um relato muito claro disso: “27. Jesus e seus discípulos voltaram outra vez a Jerusalém. E andando Jesus pelo templo, acercaram-se dele os príncipes dos sacerdotes, os escribas e os anciãos, 28.e perguntaram-lhe: “Com que direito fazes isto? Quem te deu autoridade para fazer essas coisas?”. 29.Jesus respondeu-lhes: “Também eu vos farei uma pergunta; respondei-ma, e vos direi com que direito faço essas coisas. 30.O batismo de João vinha do céu ou dos homens? Respondei-me”. 31.E discorriam lá consigo: “Se dissermos: Do céu, ele dirá: Por que razão, pois, não crestes nele? 32.Se, ao contrário, dissermos: Dos homens, tememos o povo”. Com efeito, tinham medo do povo, porque todos julgavam ser João deveras um profeta. 33.Responde­ram a Jesus: “Não o sabemos” –. “E eu tampouco vos direi” – disse Jesus – “com que direito faço essas coisas” (Mc, 11, 27-33).
Esses personagens não agiram de acordo com a sua consciência. Provavelmente teriam uma resposta, mas agem com astúcia, medindo as consequências, sem compromisso com a verdade. Será que muitas das nossas escolhas e decisões não são tomadas com critérios semelhantes?
Aproveitemos esses duros momentos que vivemos para meditar se somos coerentes, em todas as situações, com os ditames da nossa consciência, aconteça o que acontecer. Afinal, de que vale a um homem ganhar um mundo inteiro se vier a perder a sua alma?

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Começar e recomeçar


Transcorridos esses dias de isolamento e todo o contexto em que estamos vivendo por conta da pandemia, podemos ter uma certeza: nenhum de nós será o mesmo quando tudo isso passar, como também o mundo não será o mesmo. É certo que a história de cada pessoa e a da humanidade inteira é uma constante evolução. Há ocasiões, porém, em que os acontecimentos se sucedem com uma força avassaladora, capazes de trazer grandes transformações num curto espaço de tempo. Certamente estamos passando por um desses momentos.
É curioso notar como as pessoas reagem de maneira diferente diante das mesmas circunstâncias. Uns crescem com as dificuldades, tornando-se mais pacientes, mais caridosos, mais amáveis, em uma palavra, mais virtuosos. Outros, ao contrário, tornam-se mais azedos, mais impacientes, mais irritadiços, em suma, recrudescem nos vícios. Por que motivo a mesma situação produz resultados tão diferentes nas pessoas? Muitas vezes se trata de membros de uma mesma família, que vivem sob o mesmo teto, que enfrentam as mesmas dificuldades, porém, reagem de modos muito diversos diante delas. Por quê?
Certa vez ouvi de um sábio que Deus age conosco como um habilidoso escultor. Esse trabalha sobre um material inerte, como o mármore ou a madeira. A golpes, umas vezes maiores, outras menores, vai tirando, lixando, moldando, até que se transforme naquela obra magnífica. Só que o nosso Artífice divino trabalha sobre seres livres que somos nós. Por vezes aceitamos os golpes, ora fugimos deles. Eis aqui o motivo pelo qual as mesmas dificuldades ora esculpem um santo, ora um ... insuportável...
Mas a nossa vida é dinâmica. Ora estamos bem, ora surge o desalento. Nesses tempos de confinamento esses altos e baixos, como também os nossos defeitos e as nossas irritações tendem a ter uma ressonância maior nos que estão ao nosso lado, provavelmente trancafiados conosco sob o mesmo teto. Por isso, um grande desafio é o esforço para nos amparamos mutuamente. E isso numa dupla direção.
Primeiro, quando vemos que alguém que está ao nosso lado não está bem, deveríamos ter a delicadeza para perceber que precisa de ajuda. Talvez sugerir que faça algo de que gosta, como assistir a um filme, ler um livro, ficar um instante a sós em algum canto da casa, fazer uns minutos de exercício físico ou mesmo dar um passeio em locais em que não há risco de contágio, por exemplo.
Segundo, quando formos nós que não estamos bem, então que tenhamos a humildade de dizer que precisamos de ajuda, talvez de um tempo para relaxar, fazendo algo que nos agrada. Não nos esqueçamos, porém, que a maior fonte de alegria e de felicidade está em nos ocuparmos dos demais. Assim, se reclamamos um pouco de descanso e de descontração, que isso tenham um único propósito: repor as energias para, depois, servir melhor.
Esse tempo de isolamento é uma ocasião fantástica de crescer para dentro. Nos países de clima frio, em que a neve cobre as plantas, parece que essas morreram durante o inverno. Mas não! Ressurgem a cada primavera. O mesmo pode acontecer agora conosco. Essa forçosa inatividade pode ser ocasião para sermos pessoas melhores. Deixemos que o Artífice divino nos faça aquela bela escultura que nos seus desígnios eternos tem preparado para cada um de nós. E, se repararmos bem, essa obra de arte não é feita apenas de golpes. Há também muitos movimentos suaves que soam como carícias... E todos eles são muito bem ordenados para um mesmo fim: a nossa perfeição. Basta que deixemo-Lo agir.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Lições do isolamento


Muitas famílias estão em isolamento no nosso País e no mundo nos últimos dias. É provável que ninguém de nós tenha passado por situação semelhante em toda a vida. Isso pode ser ocasião para sermos pessoas melhores ou, ao contrário, ser motivo para conflitos, brigas e desentendimentos, que tanto abalam o convívio familiar.
Por isso, gostaria de compartilhar hoje com o leitor algumas experiências que temos vivenciado na nossa família.
Em meio ao isolamento, há alguns dias, foi o aniversário de oito anos do nosso nono filho, o Vicente. Há um costume na nossa família de ganhar café da manhã na cama nesse dia. Só que o leite acabou. Como tínhamos sintomas suspeitos da temível doença (tosse, dor de garganta e um pouco de falta de ar), não me aventurei a ir até a padaria comprar, apesar de ter prometido isso a ele na véspera.
Diante disso, o jeito foi me contentar com uns ovos mexidos decorados com ketchup e o nome dele escrito com uns bacons fritos. Estou certo de que seria desclassificado de plano em qualquer concurso de MasterChef para criança. A reação dele, porém, quebrou todas as minhas expectativas. Ficou felicíssimo. Comia aqueles ovos sem graça como se fosse o prato mais delicioso do mundo...
Então nos veio a primeira lição: contentemo-nos com o que temos. Com muito pouco, é possível fazer felizes os que estão ao nosso lado. Acontece que temos uma tendência para criar necessidades. Colocamos uma série de requisitos para que se possa fazer uma comemoração. No entanto, na simplicidade e nos pequenos detalhes de carinho e atenção é que se esconde o segredo da paz na família.
O dia seguiu e a minha querida e dedicada esposa convenceu o nosso médico a me atender, apesar de ser um sábado. Ele também ficou com a suspeita de que de fato eu posso ter sofrido o contágio com o Coronavírus. Voltei para casa me sentindo privilegiado. Afinal, os sintomas não foram tão incômodos assim e, se confirmado, estaria inume em pouco tempo e, quando não mais houvesse risco de contágio para outras pessoas, estaria afinal livre do isolamento. Só que não. Após inúmeras tentativas, todas em vão, fiquei sabendo que o exame só é feito em pacientes graves, o que não é o meu caso. Com isso, ficarei indefinidamente na dúvida. E segue o isolamento até o final...
Eis aqui a segunda lição: não temos controle de nada na nossa vida. Deus está no comando. Ele sabe mais e melhor o que nos convém. Muitas vezes fazemos planos e nos irritamos que as coisas não ocorram tal como havíamos planejado. Acontece que a felicidade não está em que tudo corra bem, de acordo com o nosso planejamento. Ao contrário, ela está também na aceitação das contrariedades, com a certeza de que são enviadas ou ao menos permitidas por um Pai que nos ama e que cuida de nós.
Como era um sábado, decidi não trabalhar em home office. Finalmente teria algumas horas para ler o livro que espero há tanto tempo, pensei. Só que não. Preparativos para o aniversário – somente com os irmãos presentes, o que não é pouco – depois jogos, nos quais fui vivamente requisitado, o Álvaro, de 2 anos, exigindo a atenção... Enfim, tive de me contentar com 15 ou 20 minutos de leitura...
Depois disso tudo, fizemos uma oração em família. Logo após, sem saber o motivo, invadiu uma sensação profunda de paz e alegria...
Recebi, então, a terceira lição: o segredo da felicidade está em pensar nos outros. Já o apego ao nosso comodismo, o pensar apenas em nós mesmos é a receita ideal para a frustração e para a tristeza.
Aproveitemos, pois, intensamente esse tempo de isolamento. Quem sabe o dia que voltarmos à vida normal, o mundo e os locais que frequentamos receba pessoas melhores, que souberam adquirir muitas virtudes nesses momentos difíceis.